Atendendo à decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), o juiz Sergio Moro, responsável pelas ações da Lava Jato na primeira instância, em Curitiba, expediu nesta quarta-feira alvará de soltura para o ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. Em sua decisão, Moro determinou o uso de tornozeleira eletrônica e proibiu o ex-ministro de manter contato ou se encontrar com investigados na operação e de sair dos limites da cidade onde declarou residência — no caso, Brasília.
Então Dirceu, aquele que foi treinado como espião comunista pelo regime cubano, que ficou casado por quatro anos sem que a própria esposa soubesse quem ele era de fato, que fez plástica no nariz para se disfarçar, que foi “chefe de quadrilha” no mensalão e reincidente no petrolão, que continuou dando “palestras” mesmo preso, então esse Dirceu vai respeitar a decisão da Justiça, simplesmente assim?
É muita ingenuidade mesmo! Como recordar é viver e a memória do brasileiro é curta, vamos lembrar o que fazia o mesmo Dirceu em hotel em Brasília, onde montou um governo paralelo nas sombras:
Desde que foi abatido pelo escândalo do mensalão, em 2005, tudo em que o ex-ministro José Dirceu se envolve é sempre enevoado por suspeitas. Oficialmente, ele ganha a vida como um bem sucedido consultor de empresas instalado em São Paulo. Na clandestinidade, porém, mantém um concorrido “gabinete” a 3 quilômetros do Palácio do Planalto, instalado numa suíte de hotel. Tem carro à disposição, motorista, secretário e, mais impressionante, mantém uma agenda sempre recheada de audiências com próceres da República – ministros, senadores e deputados, o presidente da maior estatal do país. José Dirceu não vai às autoridades. As autoridades é que vão a José Dirceu, numa demonstração de que o chefão – a quem continuam a chamar de “ministro” – ainda é poderoso.
A edição de VEJA que chega às bancas neste sábado revela a verdade sobre uma das atividades do ex-ministro: mesmo com os direitos políticos cassados, sob ameaça de ir para a cadeia por corrupção, ele continua o todo-poderoso comandante do PT. E agora com um ingrediente ainda mais complicador: ele usa toda a sua influência para conspirar contra o governo Dilma – e a presidente sabe disso.
A conspiração chegou ao paroxismo durante a crise que resultou na queda de Antonio Palocci da Casa Civil, no início de junho. Na ocasião, Dirceu despachou diretamente de seu bunker instalado na área vip de um hotel cinco estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas autorizadas. Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Palocci e nas quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão. Articulação minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais de uma conspiração de Dirceu e de seu grupo para influir nos acontecimentos daquela semana.
[…]
Procurado por VEJA, Dirceu não respondeu às perguntas que lhe foram feitas. A suíte reservada permanentemente ao “ministro” custa 500 reais a diária. Quem paga a conta é o escritório de advocacia Tessele & Madalena, que tem como um dos sócios outro ex-assessor de Dirceu, o advogado Hélio Madalena. Na última quinta-feira, depois de ser indagado sobre o caso, Madalena instou a segurança do hotel Naoum a procurar uma delegacia de polícia para acusar o repórter de VEJA de ter tentado invadir o apartamento que seu escritório aluga e, gentilmente, cede como “ocupação residencial” a José Dirceu.
Mas os ministros do STF resolveram confiar nesse réu, como se ele simplesmente fosse obedecer as imposições legais e se manter afastado dos investigados, sem risco de influenciar as investigações em curso? Que piada! Até o GLOBO se mostrou preocupado:
Mais ameaçadora para a Lava-Jato do que tudo será alguma mudança radical no Supremo com relação ao trabalho da força-tarefa de Curitiba. Daí os temores que surgiram depois que a Segunda Turma da Corte, onde tramitam os inquéritos abertos a partir da operação, concedeu alguns habeas corpus, beneficiando, para começar, o pecuarista amigo do ex-presidente José Carlos Bumlai; o ex-tesoureiro do PP, João Cláudio Genu; Eike Batista e, por último, José Dirceu.
É atingido em cheio um dos pilares do modelo de operação da Lava-Jato, inspirado nas Mão Limpas italianas, que é a prisão cautelar. Legal, diga-se. Sem ela, ficam quase intransponíveis as resistências à delação premiada. Por isso, noticiava-se ontem à tarde que um dos mais importantes chefes petistas, Antonio Palocci, preso em Curitiba, recuaria na decisão de negociar o testemunho.
Não se nega a fundamentação jurídica que levou ao placar de três a dois pela libertação de Dirceu, na Segunda Turma — Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandovski, contra Celso de Mello e o relator Edson Fachin. É preciso mesmo levar em conta a elasticidade da prisão preventiva, mas também o risco de que Dirceu, por exemplo, já condenado em primeira instância, possa, em liberdade, dificultar o andamento dos trabalhos em Curitiba. Por isso, Fachin e o experiente Celso de Mello, decano da Corte, foram contra a concessão do habeas corpus. E com base, também, no conjunto da obra do líder petista, ministro de Lula, e em “continuidade delitiva” desde o mensalão.
O Estadão, por sua vez, demonstrou menor preocupação e preferiu cobrar dos procuradores um trabalho mais célere:
No caso de Dirceu, o Ministério Público Federal considerou que se está diante de um condenado com “notória periculosidade”, demonstrada pela “habitualidade criminosa”, que continuou mesmo depois da condenação no mensalão. O Supremo, porém, fez prevalecer a presunção da inocência até a apreciação de apelação de sentença condenatória.
Ademais, ao suporem que Dirceu pode cometer novos crimes ou comprometer as investigações se ficar solto, os procuradores confessam que, desde agosto de 2015, quando o petista foi preso, não foram capazes de avançar em seu trabalho, que teria continuado vulnerável à intervenção de Dirceu. Tanto é assim que a Lava Jato entrou com nova denúncia contra José Dirceu no mesmo dia em que o Supremo analisava o pedido de habeas corpus – uma “brincadeira juvenil”, como classificou o ministro Gilmar Mendes.
A inquietação dos procuradores da Lava Jato com a soltura de Dirceu resultaria da percepção de que essa decisão seria um indicativo de que outros presos importantes poderiam ser libertados. Se existe, tal preocupação revela que, ao contrário do que sempre sustentaram, os procuradores apostam nas prisões para obter dos condenados as informações que buscam, por meio de delação premiada. Os membros da força-tarefa dariam a entender, portanto, que, se não conseguirem manter atrás das grades os figurões do petrolão, não induzirão os potenciais delatores a dizerem o que sabem e, por isso, será interrompido o fluxo de informações que abastece a operação.
[…]
A Lava Jato, porém, há muito tempo parece ter deixado de ser uma investigação policial. A operação parece prisioneira da presunção de que tem um papel a desempenhar no futuro da política e da Justiça no Brasil, razão pela qual qualquer ponderação que ponha em dúvida seus métodos e suas certezas será vista como manobra contra seu prosseguimento. O discurso messiânico de alguns de seus principais integrantes sugere que, para eles, todas as instituições do País estão apodrecidas, com exceção do Ministério Público. Em sua ânsia de sanear o País, a Lava Jato comete erros – e um deles deu um gostinho de vitória a José Dirceu, um dos personagens mais nefastos da história brasileira.
A Lava Jato corre riscos, sim, mas não os que são denunciados por seus integrantes. A maior ameaça está no comportamento imperioso de alguns procuradores e na absurda demora do Supremo para julgar os casos que lhe competem. É isso – e não a revogação da prisão de alguns réus, de acordo com o que manda a lei – que contribui para desacreditar a Justiça.
Já a Folha de São Paulo, naturalmente, adotou o tom mais benevolente com o STF:
Ao determinar, nesta terça (2), o término da prisão preventiva do ex-ministro José Dirceu, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal não toma uma atitude isolada ou de favorecimento discricionário.
Outros envolvidos na Operação Lava Jato beneficiaram-se há pouco tempo de decisões semelhantes. Foi o caso de João Cláudio Genu, ex-tesoureiro do PP, e do pecuarista José Carlos Bumlai.
Nos três casos, as prisões preventivas se prolongavam sem motivação clara. Dirceu estava preso desde agosto de 2015; Bumlai fora encarcerado em novembro daquele ano; Genu, em maio de 2016.
A concessão de liberdade a tais personagens não equivale, claro está, a um ato de absolvição. Todos estão condenados em primeira instância —pesando, sobre José Dirceu, um total de 32 anos de pena por diversos crimes.
Foi-lhe assegurado, apenas, o direito de aguardar em liberdade (com as diversas restrições previstas em lei, incluindo o uso da tornozeleira eletrônica) seu julgamento em instância superior.
Como se Dirceu não representasse uma ameaça à própria investigação solto! Como se não tivesse dado todas as provas de que é um homem sem escrúpulos, disposto a tudo para se safar da lei. O editorial da Gazeta do Povo foi o mais contundente sobre os estranhos motivos da soltura do perigoso meliante:
Dirceu, mensaleiro condenado, que continuou recebendo propina mesmo durante o julgamento do mensalão, já não representaria risco nenhum? Difícil crer nisso, e infelizmente é possível identificar elementos nada técnicos nos três votos a favor de Dirceu. De Dias Toffoli nem seria preciso falar nada: o ministro deveria simplesmente ter se declarado impedido de julgar seu ex-chefe. Mas, como já não o fez no mensalão, seria ingênuo acreditar que ele o faria agora. Ricardo Lewandowski também já demonstrou suas simpatias político-ideológicas em outras situações, especialmente no vergonhoso episódio do fatiamento inconstitucional da votação do impeachment de Dilma Rousseff.
Já Gilmar Mendes vem agindo metodicamente há um bom tempo contra a Lava Jato, e em seu voto de terça-feira deixou clara a vaidade que o move quando reagiu à apresentação de nova denúncia contra Dirceu pela força-tarefa naquela manhã – um movimento dos procuradores que, embora compreensível, não deixou de ser precipitado, bem como a sua reação à decisão. Ao deixar-se levar pela justa indignação, a força-tarefa acabou deixando um flanco aberto para os ataques indevidos de quem considera a Lava Jato uma agressão às garantias democráticas.
Não dá para dourar a pílula: a soltura de alguém como Dirceu é um claro golpe contra a Lava Jato, e levanta todas as suspeitas do mundo sobre os reais interesses do STF – ou boa parte dele. O Brasil corre sérios riscos. Como levar a sério as instituições de um país onde alguém como José Dirceu está em qualquer outro lugar que não a cadeia?
Rodrigo Constantino
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