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Ainda é possível manter um debate civilizado no mundo moderno? Muitos falam bastante em tolerância, mas há de fato tolerância possível com quem quer te destruir, mudar completamente seu modo de vida? Existe espaço para o humor na era do politicamente correto? A tal polarização de que tantos falam impede uma troca construtiva de visões e opiniões conflitantes? Como as redes sociais, com sua pressão por “likes”, mexeu nisso tudo?

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Essas e outras questões têm atormentado muitos pensadores no mundo atual. Quem quer que tenha um espaço público mais destacado para emitir seus pensamentos sabe do que estamos falando, de como se tornou difícil preservar essa postura civilizada e agregadora, apesar das divergências saudáveis. A patrulha das minorias organizadas e barulhentas é insuportável, os rótulos abundam, a intimidação vem para todos que ousam desafiar o status quo politicamente correto.

É o que tem unido formadores de opinião que divergem em inúmeros pontos importantes, mas concordam nessa questão essencial: a importância do livre debate de ideias calcado em argumentos e com respeito pela opinião do outro, desde que fundamentada.

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Dave Rubin, do Rubin Report, tem sido uma importante voz nessa linha, e daí o sucesso de seu programa de entrevistas. Ele veio da esquerda, hoje se considera um liberal clássico e é gay assumido: nada disso impediu a patrulha de persegui-lo. Nesse programa recente, com Jordan Peterson, Ben Shapiro e Eric Weinstein, todos ícones dessa mesma resistência em defesa da liberdade de expressão, muito foi dito sobre a importância de um debate construtivo:

O professor João Carlos Espada, em sua coluna desta semana no Observador, comenta os 190 anos da renomada revista britânica The Spectator, que representa justamente uma ode ao livre debate de ideias com humor e civilidade. Diz o professor português:

A capa é, desde logo, imbatível. Um cartoon super-divertido com os principais líderes da presente conjuntura britânica, euro-americana e mundial. A seguir à capa, o Editorial é também imbatível. Não seria possível resumi-lo aqui. Mas não resisto a dizer que associa a defesa de uma disposição conservadora com o sentido de humor e de moderação.

Por essa via, recusa as  dicotomias tribais que estão a ser alimentada pela chamadas redes sociais. Sustenta a necessidade de abertura para escutar os sentimentos dos eleitores — designadamente no que respeita aos seus sentimentos de identidade nacional, cristã e ocidental. E defende “a velha tradição britânica de robusta mas amigável discordância”.

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 “The Spectator” é uma expressão típica da originalidade da tradição conservadora-liberal britânica. É por isso muitas vezes difícil de compreender no continente — ou mesmo do outro lado do Atlântico.

Na década de 1840, liderou a campanha pelo comércio livre contra as proteccionistas “Corn Laws”, que foram derrotadas no Parlamento em 1846. Na década de 1860, defendeu com argumentos cristãos a causa anti-esclavagista do Norte na guerra civil americana. Nas duas grandes guerras do século XX esteve sempre patrioticamente ao lado das tropas britânicas. Em Janeiro de 1965, após a morte de Churchill, publicou uma capa memorável com um grande cinzeiro e um charuto apagado e meio fumado.

Estoicamente anti-comunista, abriu as suas páginas, na década de 1980, a alguns dos melhores repórteres — como Anne Applebaum, Tim Garton Ash e Noel Malcom — sobre a revolta anti-soviética na Europa central e de Leste. Defendeu Margaret Thatcher e Ronald Reagan — embora tenha sido contra a entrada britânica na Comunidade Europeia, no primeiro referendo, e a favor da saída, no mais recente. Mantém hoje prudente distância de Donald Trump, ao mesmo tempo que exprime simpatia e compreensão para com os seus eleitores.

Num mundo repleto de militantes que querem “moldar a sociedade” (à sua própria imagem, demonstrando seu narcisismo limitado), faz falta quem adote uma missão mais humilde de procurar compreende-la melhor como um “espectador”. O editorial citado pelo professor merece ser lido na íntegra. “Os prazeres dos livros, conversas e outras diversões acidentais da vida”: eis a missão da revista na origem, e cento e noventa anos depois isso ainda é seu foco. “Nós sentimos que é necessário mais do que nunca”, acrescenta. Numa tradução livre:

Há apenas alguns anos, um chamado para conversas civilizadas sobre política e vida talvez não parecesse tão urgente. Agora é. O tipo de rancor e tribalismo que era aparente na Escócia depois de seu referendo sobre o nacionalismo se espalhou pelo Reino Unido desde o voto do Brexit. Economistas eminentes, políticos e filósofos ficaram loucos com o assunto. Nós vemos os “brexistas” que se gabam incessantemente de seus oponentes vencidos, e os defensores da permanência na UE que continuam a retratar o outro lado como xenófobos muito estúpidos para entender a enormidade de seu erro.

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Em tudo isso, algo se perdeu: a longa tradição britânica de desacordo robusto mas amigável. Nos dias de hoje, os feeds do Twitter emitem uivos de raiva quando pessoas sensatas entram na Internet para procurar uma briga. A mídia social tende a confiar em “compartilhamentos”, e isso, estudos mostram, encoraja a publicação de comentários cada vez mais raivosos. As melhores mentes são levadas à histeria por causa de seu vício em “curtidas” e “seguidores”. Desacordo rapidamente se transforma em abuso pessoal.

[…] Os tipos como Beppe Grillo, Donald Trump e Boris Johnson foram todos dispensados como palhaços, geralmente sem ninguém perguntar por que eles tiveram sucesso. Muitas vezes é porque eles estão tão dispostos a usar o humor. Os eleitores, como os leitores da Spectator, acham o humor um antídoto útil para a cultura da indignação.

[…] O espectro que hoje assombra a Europa não é o populismo, mas a censura de partidos políticos estabelecidos que se recusam a ampliar os parâmetros do que está em discussão. É um grande problema, mas pode ser facilmente resolvido quando há vontade de se engajar. A Spectator foi lançada, desde a sua primeira edição, “para transmitir inteligência” e promover o debate bem-humorado. É o que nos esforçamos para fazer hoje, porque achamos que nosso país precisa disso.

Em que pese a importância do alerta da revista conservadora britânica, surge a questão: dá para manter o humor e mesmo a civilidade quando do outro lado temos não interlocutores de ideias diferentes ou mesmo adversários político-ideológicos, mas sim figuras ressentidas que pretendem usar as redes sociais para impedir o debate civilizado e alterar radicalmente nosso modus vivendi? É o tema da coluna de Luiz Felipe Pondé na Folha hoje:

Vivemos na era dos humores ofendidos. E aqui, também, há quem ponha a culpa nas mídias sociais, que trouxeram para perto da superfície da comunicação toda uma gama de pessoas que viviam no silêncio, na irrelevância e na invisibilidade. 

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Na hora em que esse “contrato de exclusão social da invisibilidade” foi rompido, o ressentimento, o rancor e o ódio mostraram sua face antes escondida. E a democracia pode não sobreviver a essa participação popular aguerrida, cozida no ressentimento, no rancor e no ódio.

O que são os humores ofendidos? Você sabe bem do que falo. Trata-se da destruição crescente da capacidade de discussão de ideias sem que alguém ache que alguém faltou com o respeito com alguém. Tem “alguém” demais nessa frase? Sim, tem. A presença demasiada de “alguém” aqui é a representação da saturação de sentimentos narcísicos que assola o mundo hoje.

Os humores ofendidos podem destruir a democracia porque esta exige pessoas que não se ofendam com tudo que os outros dizem. A democracia é um regime argumentativo, inclusive na dimensão social do debate. E retórico.

É possível sobreviver aos humores ofendidos? Para além de um fato evidente (uma cultura dos ofendidos é um mundo de chatos ressentidos), seria possível voltarmos aos tempos de uma democracia sem ofendidinhos? Por ora, parece que não.

Alguns especialistas, como Steven Levitsky e Daniel ​Ziblatt, entendem que você só pode discutir ideias de forma educada e distanciada se elas, as ideias, não significam, de fato, um risco para as formas de vida dos agentes envolvidos no debate de ideias. Se houver risco concreto, há risco de violência destrutiva da democracia.

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Logo, podemos manter um debate elegante se nenhum de nós, de fato, colocar em risco as formas de vida do outro. Exemplo dessas formas de vida seriam patrimônio, cotidiano, futuro, autoestima, crenças religiosas ou quem de fato chega à condição de representantes do povo, com poder político de fato. 

Dito de outra forma: só há tolerância quando não há razão de fato para não ser tolerante. Nesse sentido, toda a “ética de respeito ao outro” seria uma noite de queijos e vinhos entre outros que não são outros de fato.

Volto ao começo: dá para apostar no debate civilizado, de preferência com pitadas de humor inteligente, nesse mundo de ressentidos intransigentes e raivosos? Até que ponto essa turma ameaça a própria democracia? Não tenho as respostas. Tenho, porém, a convicção de que tais valores merecem ser defendidos com muita firmeza, pois sua destruição seria a destruição não só das democracias liberais, como também da própria civilização ocidental.

Rodrigo Constantino