Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Confissões de um ex-libertário – salvando o liberalismo dos liberais modernos, mais recente lançamento editorial do presidente do Conselho Deliberativo do Instituto Liberal, o prezado Rodrigo Constantino, é provavelmente um livro a suscitar reações polarizadas no debate interno entre as forças antiesquerdistas – liberais, libertários e conservadores.
Por sua própria natureza, o livro deverá ser insuportável para alguns – em especial aqueles que desfraldam a bandeira da liberdade, mas não parecem tão dispostos a conviver com desvios de seu “liberalismo” ou “libertarianismo” ideal e torcem o nariz para a pluralidade conceitual dos rótulos – no caso do liberalismo explicitada, por exemplo, na obra clássica do social liberal brasileiro José Guilherme Merquior, O Liberalismo Antigo e Moderno. Para outros, será uma oportuna organização de posicionamentos que não contém nenhuma novidade, já que quem acompanha o trabalho de Constantino já sabe o que ele pensa hoje sobre a maioria dos temas abordados, mas que constituirá um conjunto agradável aos olhos, por trazer formulações que muito desejariam ver estampadas quando se deparam com debates acerca de bizarrices como, por exemplo, o mercado de venda de bebês.
Estou no segundo grupo. Para mim, entre os livros do Rodrigo que li, Confissões já é meu favorito. Subscreveria praticamente todo o conteúdo da nova obra de Constantino. Isso porque o livro é basicamente uma grande declaração da legitimidade de um posicionamento que, sem jamais abdicar do liberalismo, dos valores da propriedade privada, da economia de mercado, do respeito às prerrogativas individuais, da livre expressão, sem jamais sucumbir a reacionarismos antiliberais de qualquer espécie, confere, em estrita obediência a uma tradição que perpassa nomes que vão de Adam Smith até Friedrich Hayek, importância a temas que podem ser encontrados naquilo que de melhor o pensamento conservador, de inspiração burkeana, teria a oferecer.
O próprio Merquior, entre outros autores, diria que o liberal conservadorexiste e é uma tendência interna ao liberalismo; Constantino não está preocupado com rótulos, mas ele o emprega, e no fundo sua obra é exatamente isso: ele está dizendo a libertários, anarcocapitalistas, “left-libs” ou sociais liberais, objetivistas e reacionários, que o liberal conservador é real e tem seu lugar ao Sol, além de não ser, de modo algum, uma incoerência ambulante. Também está dizendo que sua visão não se confunde com o moralismo tacanho e a imposição via Estado de um puritanismo imbecil, mas que valoriza o respeito aos limites que a natureza e os fatos impõem à arrogância fatal do racionalismo inveterado – postura que não poderia ser mais hayekiana – e entende a importância de se preocupar com a dimensão cultural, porque não somos, absolutamente, um aglomerado de átomos, mas, por liberais que sejamos, constituímos sociedades, em que o que está à nossa volta tem importância.
Sua tese é a de que “várias conquistas liberais importantes ultrapassaram limites ‘gravitacionais’ e passaram a ameaçar a própria liberdade individual. Do liberalismo, chegamos a algo bem diferente, mas que preserva seu nome. Em nome da liberdade, coloca-se a liberdade em xeque. E, se os liberais clássicos não reagirem, poderão ver a asfixia da liberdade ocorrendo em nome de sua própria doutrina. Por isso se tornou tão importante uma aliança com os ‘conservadores de boa estirpe’. Eles entendem melhor o perigo ‘progressista’”.
Para demonstrar isso, Constantino reconstrói a história das ideias liberais até que, por exemplo, nos Estados Unidos, o “liberalismo” passa a travestir ideias de esquerda e se casa com as políticas identitárias, inerentemente coletivistas e que, sob o pretexto de mais igualdade, reforçam distinções, convocam as legislações e o Estado a se agigantarem e massacram as liberdades e direitos individuais que propunham proteger. É duro com alguns grupos libertários e objetivistas que, encerrados em seus sistemas, se comportam de forma sectária e rechaçam a divergência.
Defende a democracia das críticas dos libertários que, ostentando os discursos de pensadores como Rothbard e Hoppe, preferem negar a vida pública e rejeitar os méritos de pensadores antigos acerca do assunto, como o próprio Aristóteles. Constantino prefere, como eu, a humildade de Churchill, para quem a democracia era bastante defeituosa, mas era o menos ruim dos regimes que desenvolvemos. Questiona o desprezo a problemas morais como a prisão no hedonismo, a descaracterização dos conceitos de casamento ou de família, a aversão ao patriotismo como se fora sinônimo de nacionalismo doentio, a banalização da vida humana com a exaltação do aborto e da eutanásia, a ojeriza irracional ao legado do Cristianismo para o desenvolvimento da civilização ocidental e o pacifismo ingênuo e sistematicamente isolacionista segundo o qual a guerra nunca é necessária.
Tudo isso sem, frise-se sempre, jamais encampar a receita antimoderna e tradicionalista antiliberal de tentar impor valores por vias autoritárias e desmontar os avanços institucionais do liberalismo. Constantino quer proteger suas ideias e do seu campo político-intelectual das ideias dos objetivistas e dos libertários, de um lado, que advogam teses radicalmente racionalistas ou que negam completamente os apelos da vida em comunidade como se todos merecessem a mesma alcunha de “coletivismo” insidioso, de um lado, e, de outro, da adoção por parte de alguns segmentos liberais das pautas do politicamente correto e do lobby das minorias, do feminismo e de outros movimentos identitários.
Essa tomada de posição é análoga à que Edmund Burke fez quando, não obstante um membro do partido liberal Whig britânico, desafiou seus colegas ao ver que os ideais abstratos e de consequências autoritárias e destrutivas da Revolução Francesa começaram a entusiasmá-los. Confissõestem, portanto, na “nova direita” brasileira e no movimento liberal, a proposta relativa de funcionar como Reflexões sobre a Revolução na França: defendamos o liberalismo, sim, mas não nos apaixonemos tanto por postulados abstratos a ponto de esquecermos o mundo real. Não sejamos tolos que proclamam amor à liberdade quando a matamos e nos entregamos ao abate, nas mãos de seus maiores inimigos.
A obra de Constantino é corajosa, sobretudo, porque, depois de todas as críticas que ele já sofreu, submete seu próprio trabalho, realizado ao tempo em que defendia algumas das ideias que hoje critica, a uma reavaliação. Isso não é nada fácil e, embora, com toda a deferência aos amigos que professam essas teses, eu jamais tenha sido libertário, anarquista ou objetivista para dizer que experimentei nessa pele essa dificuldade, admiro profundamente essa disposição.
Aqueles que, como eu, sempre tiveram as posições que Constantino ora estampa em seu trabalho se identificarão com a obra. Os amigos de luta pela liberdade que preferem os contornos mais radicais do libertarianismo ou menosprezam a esfera cultural poderão encontrar aí um interessante estímulo ao desafio às suas próprias convicções e, assim como nós lemos Rothbard e sua turma, só terão a ganhar ao travar contato com o outro lado da história.
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