Alguns conservadores influentes já se deram conta de que há, do “lado de cá”, uma turma que usa o mesmo rótulo, mas não fala a mesma língua. Trata-se de uma turma reacionária, que idealiza o passado, e que adora gurus, mitos, ídolos. Esse pessoal possui mente binária, do tipo “nós contra eles”, e ao constatar que vivemos numa guerra cultural, adota a mesma postura do inimigo marxista, mas com o sinal trocado. Se você desvia um milímetro da cartilha, só pode ser um “deles”, um socialista fabiano!
Eu já teci alguns comentários sobre isso em diferentes textos, e claro: fui alvo da virulência desses reacionários fantasiados de conservadores. Por isso sempre fiz questão de fazer a distinção, frisando a expressão “conservadores de boa estirpe”. Há aqueles que mancham a reputação do grupo, as “maçãs podres” que parecem ter descoberto Gramsci ontem e se enxergam como os únicos cruzados do planeta enfrentando monstros comunistas por toda parte.
Mas confesso que não é fácil atacar essa postura. Explico: sabemos que o verdadeiro inimigo, ao menos o maior inimigo, aquele que representa um perigo mais iminente, ainda vem da esquerda. E, por puro instinto de sobrevivência, somos levados a fazer vista grossa aos tipos meio tacanhos em nome da causa comum: o inimigo do meu inimigo é meu amigo e coisa e tal.
Só que no longo prazo seremos cobrados por isso. “Por que você não condenou os excessos da dita direita, não apontou para as posturas inaceitáveis de certas figuras que falavam em nome do conservadorismo?” A pergunta será legítima, claro. E em nome da honestidade intelectual, e também do próprio liberalismo-conservador lá na frente, é preciso deixar registrado desde já que somos bichos diferentes, apesar de uma aparente aliança tática.
Bruno Garschagen, sem dúvida um dos que mais entende de conservadorismo em nosso país, publicou esses dias um ótimo texto na Gazeta do Povo justamente sobre isso, em que acusa os jacobinos da “nova direita”. Foi rotulado, evidentemente, de “isentão”, quando não de adversário. Os que assim fizeram sequer perceberam que estavam comprovando a tese do autor. E como são mais barulhentos, acabam se destacando como representantes de toda a direita, o que é preocupante. Bruno conclui:
Quando os antissocialistas mimetizam a mentalidade e a ação política do inimigo, tornam-se o espelho da perfídia. Quando advogam a purificação do Brasil do socialismo usando os mesmos instrumentos dos socialistas, reduzem a virtude do combate necessário à estatura moral e ideológica de seus oponentes. Convertem-se, assim, nos novos milenaristas, nos jacobinos da “nova direita”.
Hoje foi a vez de outro profundo conhecedor do conservadorismo, João Pereira Coutinho, escrever em sua coluna na Folha contra esses reacionários, os que adotam a perigosa crença do “era uma vez…”, ou seja, a de que houve um passado perfeito que precisa ser resgatado. Coutinho explica: “Eis a essência do pensamento reacionário: a crença de que exista um passado -próximo ou distante, pouco importa- em que as misérias do presente (pobreza, insegurança, competição etc.) não existiam”.
Quem parte dessa premissa costuma pregar bandeiras estranhas, que atentam contra o progresso – até porque não acreditam nele. É verdade que o mundo moderno nos passa a impressão de decadência, de estar moralmente corrompido. Mas é perigoso quando passamos, por isso, a sonhar com um passado utópico, que jamais existiu de fato. Em Esquerda Caviar, já fiz questão de apontar para esse risco:
Não quero cair na tentação comum de idealizar o passado, como fazem os saudosistas. O alerta de David Hume, tão bem retratado no filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen, merece ser sempre frisado: “O hábito de culpar o presente e admirar o passado está profundamente arraigado na natureza humana”. Essa sensação de que os tempos dourados ficaram para trás parece bastante comum. Basta ver o que Baltasar Gracián escreveu em A arte da prudência:
Muitos valores vieram a parecer antiquados: falar a verdade, manter a palavra. Os bons parecem pertencer aos velhos tempos, embora sejam sempre queridos. Se é que ainda há alguns, são raros, e nunca são imitados. Que triste época esta, quando a virtude é rara e a maldade está no cotidiano.
Isso foi escrito no século XVI! Portanto, saibamos calibrar o pessimismo com o presente e descontar a empolgação com o passado, quase sempre idealizado. Havia muita coisa errada antes, que merecia duras críticas. É até compreensível a revolta contra a sociedade puritana, machista e moralista de tempos mais remotos.
Olhar para a suposta decadência moral e alimentar uma fé de que nada disso existia antes é tentador, mas equivocado. E os reacionários tendem a cometer esse erro. Coutinho cita Trump e Le Pen como exemplos de lideranças que despertaram esses sentimentos em muitos, e com isso concordo. Ele também relata que vem sofrendo muitos ataques e perdendo leitores, o que comprova essa postura intransigente e tribal de muitos “conservadores”, incapazes de aguentar uma só crítica construtiva que seja. Ele conclui:
O conservadorismo é uma ideologia de imperfeição humana, não de arrogância epistemológica. É uma ideologia que procura preservar o que é válido no presente recorrendo aos instrumentos tangíveis desse presente -e não a fantasias sobre o passado.
Faço coro, e sempre bati muito nessa tecla da arrogância epistemológica: acho que a humildade na crença de como obtemos conhecimento é o primeiro passo para uma postura saudável em política. Evita radicalismos utópicos, tanto dos que querem impor um futuro maravilhoso, como dos que querem resgatar um passado fantástico – e inexistente.
Dito isso, venho em defesa agora de quem apoiou Trump, ou mesmo Le Pen, apesar de reconhecer que essa é mais difícil de defender. Concordo com Coutinho que muitos idolatram Trump, que o enxergam como solução para quase tudo, que adoram seu estilo fanfarrão (pois politicamente incorreto) e suas promessas (protecionistas). Esses provavelmente estariam entre os tais reacionários. Mas nem todos são assim.
Muitos defenderam Trump menos pelo que ele defende e mais pelo que ele combate. Ele seria, nesse caso, um “mal necessário”, pois a alternativa era muito pior. Em vez de Neil Gorsuch, um originalista, na Suprema Corte, teríamos mais um “progressista” com Hillary Clinton. Em vez de um cético na EPA, teríamos mais um ambientalista fanático. E por aí vai.
De quem adora Marine Le Pen ou mesmo Trump (e podemos incluir Jair Bolsonaro na lista), quero manter uma distância saudável. O cheiro de reacionarismo exala forte, sem dúvida. Mas de quem defende esses políticos, principalmente o presidente americano, por um cálculo pragmático de que é o melhor que temos para o jantar, pois o prato alternativo é mais indigesto ainda, eu quero proximidade: acho que entenderam o cenário atual melhor do que muitos que adotam postura neutra entre socialistas e reacionários. Não reagir ao socialismo hoje é suicídio.
Talvez esse texto receba pedrada de quase todos os lados. Concordo conceitualmente com os conservadores de boa estirpe – e acusar Garschagen e Coutinho de não serem conservadores legítimos é uma piada que prova suas denúncias. Mas entendo a motivação de muito reacionário, e nesse específico momento, acho que são eles que, ao menos, têm enfrentado com mais energia a maior ameaça, o perigo real e imediato.
Só que não posso me furtar de criticá-los, de forma dura até, pois é preciso deixar bem claro que não são, em hipótese alguma, conservadores, e sim reacionários, muitas vezes tacanhos. Que venham as pedras…
Rodrigo Constantino, para o Instituto Liberal
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