Hoje vai chover. O dia em que concordei com o socialista Verissimo! Em sua coluna, ainda que falando de jazz, Verissimo simplesmente defendeu o ponto de vista conservador sobre mudança. Ele aplaudiu a inovação, fruto da criatividade do artista, desde que sem trair a estrutura. Do contrário, temos pura cacofonia. Diz ele:
O jazz se presta a romantizações equivocadas. Como sua essência é o improviso, é comum festejá-lo como uma exaltação da liberdade sem limites. Mas, como as gravações totalmente livres de Tristano provaram, a liberdade pode ser mal entendida. O maior valor de um improviso é a sua relação com uma estrutura existente — Charlie Parker destruindo uma melodia e a reconstruindo à sua maneira, livremente, mas sem desrespeitar a sua progressão harmônica. A genialidade de um grande músico de jazz, ou de qualquer outro tipo de música improvisável, se define nessa capacidade de fugir criativamente da melodia sem traí-la.
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O exemplo de Tristano serve para outras artes. Picasso aprendeu tudo o que precisava saber sobre estrutura e forma na sua fase acadêmica, o que o libertou para enlouquecer no resto da sua obra, e ultrapassar limites sem perder um senso básico de harmonia. James Joyce levou a criação literária a um limite extremo em “Ulysses”, que, na sua estrutura e nas suas alusões a clássicos e mitos, mesmo com sua linguagem revolucionária, mantém, por assim dizer, os seus pés no chão. Já em “Finnegans Wake”, Joyce, como Tristano, foi longe demais. Não vamos chamá-lo de cacofônico, mas chegou perto. Não consegui ler mais de três páginas de “Finnegans Wake” .
A mensagem é justamente a conservadora. Diz-se, por preconceito ou ignorância, que o conservador é aquele contra qualquer mudança. Não é verdade. O conservador pode ser cético em relação ao “progresso”, ou mesmo avesso a algumas mudanças, mas o fundamental, para ele, será preservar as estruturas, os pilares da tradição. Quem viu a série “Downton Abbey” entenderá melhor. Há várias falas dos principais personagens nesse sentido.
Quando pensamos no pós-modernismo, vemos como essa mensagem foi abandonada. O “inovador”, atualmente, parece ser tudo aquilo que desfaz as estruturas, que destrói tudo o que havia antes. É o confronto pelo confronto, a quebra de tabus pelo simples prazer de destruir, não de construir algo realmente novo. Em nome do politicamente correto, tudo passou a ser arte, ou seja, nada mais é.
Quem se colocou no caminho desse processo destrutivo, que confunde liberdade com “vale tudo”, foi justamente o conservador. Peguemos o caso da estética artística: Roger Scruton tem sido uma das vozes mais robustas em defesa do conceito de beleza. Em Why Beauty Matters, Scruton reforça o apelo de que a obra de arte procurava superar o efêmero, não misturar tudo em um relativismo que visa à destruição do próprio belo.
Já em The Uses of Pessimism, o filósofo britânico ataca o que chamou de a falácia do “espírito em movimento”. Trata-se da vulgarização da ideia de “espírito dos tempos”, transformada numa arma retórica usada para justificar inovações em toda esfera, e para racionalizar um repúdio profundo ao passado. A falácia consiste em assimilar tudo que está acontecendo no mundo em que habitamos como se fosse parte desse “espírito dos tempos”.
Toda a ruptura no mundo das artes, por mais vazia ou ofensiva, passa a ser vista como defensável. A tentativa de se aderir a padrões ou regras estabelecidas pelas gerações anteriores será tida como essencialmente reacionária, um exercício de nostalgia. Ao descartar quaisquer regras ou padrões, esses “artistas” encontraram o caminho livre para produzir porcaria e chamá-la de arte. Sem critérios, a arbitrariedade tomou conta da arte. Regras podem ser quebradas na arte, desde que sejam antes internalizadas.
Outro que sempre atacou bastante a “arte contemporânea” e o “vale tudo” atual foi Tom Wolfe, igualmente conservador. “Para os colecionadores, curadores e mesmo alguns marchands“, diz Wolfe em A Palavra Pintada, “as obras novas que pareciam genuinamente feias… começaram a adquirir uma aura estranha e nova…” Daí em diante foi cada vez mais acelerada a destruição da verdadeira arte. Não havia mais limite ao absurdo, pois toda crítica era vista como fruto de uma inclinação burguesa reacionária, o que ninguém desejava demonstrar.
Em A Nascente, a libertária Ayn Rand também condena os “progressistas” que, em nome da “inovação”, acabaram destruindo qualquer conceito de arte. Um livro chamado Céus e Véus, de Lois Cook, representa no romance tudo aquilo que diz apenas blá-blá-blá com ar de profundidade, mas não quer dizer absolutamente nada na prática. O rei está nu, mas os “intelectuais” se recusam a admitir. A máxima deles poderia ser resumida assim: “Uma coisa não é elevada se podemos alcancá-la; não é profunda se podemos enxergar-lhe o fundo”.
Isso poupa um monte de gente de tentar alcançar, raciocinar ou enxergar alguma coisa na obra de arte, assim como os leva a desprezar aqueles que tentam. O importante é não compreender nada, pois isso significa que a obra é realmente “profunda”. O vilão do romance, Toohey, diz ao seu pupilo: “É só isso, o som enquanto som, a poesia das palavras enquanto palavras, o estilo enquanto revolta contra o estilo. Mas apenas o espírito mais refinado pode apreciar isso, Peter”.
O inocente útil e covarde Peter Keating poderia, então, falar sobre aquele livro a seus amigos, e se eles não entendessem ele saberia que era superior. Não precisava explicar tal superioridade. Seria somente isso: “superioridade enquanto superioridade”, automaticamente negada aos que pedissem explicações. Os relativistas, ao defenderem que nada é superior a nada, “apenas diferente”, no fundo cospem no que é realmente superior e, com isso, ainda se sentem superiores.
Quando Newton diz que, se enxergou longe, foi porque subiu no ombro de gigantes, ele está reconhecendo a importância da tradição, do conhecimento acumulado, dos padrões estabelecidos pelos seus antecessores. Sim, os gênios inovam, são criadores de algo novo, que muda nossa forma de ver o mundo. Mas há uma enorme diferença entre isso e o mero ataque irracional a tudo que existe.
O que vale para o jazz, para a pintura e para a literatura, vale para muitas outras coisas. Ignorar as estruturas existentes é produzir pura cacofonia, algo sem sentido. É o que tanto “artista” tem feito hoje em dia. É o que tanto “intelectual” aplaude. É defender a mudança pela mudança, como se não importasse qual mudança, ou o que mudou e o que foi preservado. O conservador é aquele que foca nessa parte.
Rodrigo Constantino