“Refreia as tuas paixões, mas toma cuidado para não dar rédeas soltas à tua razão.” (Karl Kraus)
A pré-história do humanismo reside no mundo clássico, no termo latino humanitas, que significa natureza humana, no sentido de uma natureza civilizada – em oposição à bárbara. Embora às vezes costumava significar filantropia, o termo foi mais frequentemente implantado para indicar o tipo de discurso e educação que era adequado para um homem cultivado.
Foi no século XIX que o termo passou a representar um conjunto de conotações mais complexas e até antagônicas à religião, como explica Nick Spencer em The Evolution of the West. Os pensadores franceses Saint-Simon e Auguste Comte chegaram a desenvolver uma Religião da Humanidade, mais conhecida como Positivismo, que buscava deificar a humanidade com base na razão.
O ápice dessa mentalidade se deu com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, preparada pela ONU em 1948. Ela contém sete cláusulas que descrevem os “fundamentos do Humanismo moderno”, que afirmam (em resumo) que o humanismo (1) é ético; (2) é racional; (3) apoia a democracia e os direitos humanos; (4) insiste em que a liberdade pessoal deve ser combinada com a responsabilidade social; (5) é uma resposta à demanda generalizada por uma alternativa à religião dogmática; (6) valoriza a criatividade artística e a imaginação; (7) e é um sentido da vida visando a máxima realização possível.
No núcleo do humanismo está, evidentemente, a palavra, o conceito e um compromisso sério com o “humano”. Os humanistas, tanto religiosos como ateus, falam sobre a “dignidade”, o “valor” ou a “santidade” dos seres humanos, ou da vida humana ou da “pessoa” humana. Na hora de justificar tais qualidades, porém, a argumentação parece insatisfatória. Alegam que deve ser assim “porque é melhor para todos”, ou “porque desejamos nos livrar do medo”, ou “porque vivemos à sombra do mal”. Para Spencer, são explicações admiráveis, mas filosófica e eticamente pouco convincentes.
Essa é ainda uma condição infeliz para que o humanismo se encontre, sem uma razão sólida para estarmos comprometidos com o valor da dignidade humana. Foi o ponto a que T.S. Eliot se referiu quando apontou para a dependência do humanismo das tergiversações da palavra “humano”. Se você remove da palavra “humano” tudo o que a crença no sobrenatural deu ao homem, você pode vê-lo finalmente como não mais do que um pequeno animal extremamente inteligente, adaptável e malicioso. Os darwinistas sociais o veem exatamente dessa forma.
Para Spencer, definir o ser humano é difícil quando toda referência à transcendência – ou, no mínimo, a qualquer percepção de transcendência – é removida. Por mais generosos que possamos ser, certamente não é natural ou óbvio para os humanos atribuir dignidade e valor a todos os seres humanos em todos os lugares, independentemente da capacidade ou circunstância.
O critério para o valor de uma coisa não é necessariamente o que ela pode fazer, como ela aparenta ou quantos dela existem. Em vez disso, o critério primário de valor é simplesmente se alguém a valoriza. O ursinho de pelúcia surrado da criança, a carta de amor e a fotografia familiar em preto e branco têm valor porque a criança, a amante ou a mãe estão profundamente apegadas a eles.
Uma coisa pode ter um valor, mas não faz sentido dizer que tem dignidade. Dignidade é um atributo que damos apenas aos humanos e às coisas que eles fazem. No entanto, dizer que um humano tem dignidade é pressupor que ele ou ela também tem valor. É essa compreensão do valor – alguém tem valor porque ele ou ela é valorizado por outro – que está no coração da compreensão cristã da dignidade humana, sendo o “outro”, nesse contexto, naturalmente Deus.
Se fôssemos atribuir valor apenas com base nos comportamentos, na capacidade, ou em relação à produtividade ou generosidade, nosso fracasso recorrente de viver de acordo com tais padrões iria erodir esse valor. Em suma, seria uma maneira de mostrar não o valor humano, mas a ausência de valor, justamente por nossas constantes falhas e imperfeições. Para os cristãos, os seres humanos são valorizados por Deus porque carregam em si a imago dei, o que não depende de suas habilidades. O valor humano seria dependente então não do quanto de amor nós damos, mas do quanto nós recebemos. Somos amados por nosso Criador, logo, temos valor intrínseco.
Isso é profundamente importante para a forma como nos tratamos. Pois, se tudo o que precede é verdade, sempre que interajo com outra criatura que tenha a imagem de Deus, estou interagindo com alguém que é amado completamente e permanentemente por Deus. Suas capacidades e qualidades morais, ao mesmo tempo que são relevantes para o seu papel na sociedade, não têm qualquer influência sobre o seu valor intrínseco, que é determinado apenas por Deus.
A marca mais clara do humanismo da Igreja primitiva foi encontrada não apenas no seu apoio aos pobres pagãos, mas na atenção e no respeito que dava aos que estavam bem às margens da vida. A igreja cristã primitiva mostrou um compromisso ideológico e prático profundamente transformador para com a dignidade e o valor humanos, um humanismo poderoso e determinado, que pode ter sido repetidamente traído no tempo da cristandade, mas nunca foi completamente perdido.
Os iluministas, como Kant, tentaram mudar o paradigma para a capacidade racional do homem, usando o argumento de que os seres humanos (exclusivamente) têm a capacidade de uma agência racional, e é essa a capacidade de direcionar sua vontade para seus próprios fins livremente escolhidos que justifica que “o homem existe como um fim em si mesmo e não apenas como um meio para uso arbitrário” dos outros. Uma vez que é uma natureza racional que faz de você uma pessoa, é respeitando essa natureza em você que o outro demonstra o devido respeito.
Mas e quanto àqueles que não possuem capacidade racional? Eles não desfrutam de dignidade humana? E os bebês que não desenvolveram ainda tal capacidade? E aqueles que sofreram algum acidente e a perderam? E aqueles cujas doenças prejudicaram seu raciocínio? Podem, então, ser tratados como animais, ou pior, como simples objetos?
A própria Declaração ilustra o problema dessa abordagem racionalista. É preciso confiar na “dignidade humana” e ponto, sem compreender exatamente como. Essa foi a própria constatação de pensadores envolvidos com o texto. Em países e culturas que absorveram tais valores e princípios, talvez por inércia do cristianismo, tudo bem, isso pode funcionar por um tempo. Mas e em culturas que não dão o devido peso ao indivíduo? E os povos que não internalizaram conceitos morais como esses, e acham, por exemplo, que o infanticídio de bebês “defeituosos” é justificável em nome do utilitarismo?
Poderíamos estar falando de povos bárbaros, de indígenas selvagens, mas o próprio Ocidente secular caminha nessa direção. As ideias de eugenia quase vingaram no passado, e estão retornando com força. A Islândia, por exemplo, eliminou o “problema” da Síndrome de Down com o aborto, e muitos ocidentais acharam o máximo, bastante prático e eficiente. Se dá trabalho, se não é “perfeito”, então é só matar, ora bolas! E tudo em nome do humanismo, o que é mais perverso.
A utopia “racional” justifica atos realmente bárbaros, como a Revolução Francesa mostrou em abundância. No filme “A Praia”, com Leonardo DiCaprio, um grupo que pensa ter descoberto a felicidade comunitária perfeita aumenta o som da música para abafar os gritos de dor que chegam de um colega atacado por tubarão. O show precisa continuar. Desacostumados com a imperfeição e em busca da euforia perpétua, aquelas pessoas não mais compreendiam a ideia de dignidade humana, vista como um fardo para seus anseios racionais e egoístas.
O humanismo secular talvez funcione relativamente bem enquanto houver gerações com valores cristãos remanescentes. Mas como isso tem se deteriorado rapidamente na era moderna, os fundamentos frágeis que sustentam a ideia de “dignidade humana” sem o conceito de transcendência vão desmoronando, até se perderem por completo.
O fundamento cristão para a “dignidade” humana ou o “valor” inerente ao humanismo é mais robusto do que os fundamentos ateístas comparáveis. Sem ele, conclui Spencer, o compromisso do humanismo com a dignidade humana é mais fraco e talvez até mesmo insustentável. Já não estamos observando os efeitos nefastos desse “humanismo” puramente racional?
Rodrigo Constantino
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