Numa República, quem governa são as leis, igualmente válidas para todos. O império das leis é a marca registrada de uma República que valha tal nome. Enquanto isso, democracias capengas são controladas por maiorias instáveis e momentâneas, ou melhor, por minorias organizadas que manipulam a maioria dos eleitores, que falam em nome do povo, sem os devidos freios legais, sem os limites constitucionais e a devida divisão dos poderes.
O Brasil é claramente uma República em construção, inacabada. Está mais para uma democracia populista e clientelista do que qualquer outra coisa. Os poderosos concentram muito poder, poder arbitrário, enquanto o povo é tratado como súdito, não como cidadão. A impunidade no meio político tem sido a marca registrada desse regime, e boa parte da população parece saturada dos abusos, cansada, indignada.
Surge, nesse contexto, uma turma de servidores públicos mais idealista, que avança com a Operação Lava-Jato sobre a podridão da política nacional. É claro que seriam os heróis do povo brasileiro. Mas, diante disso, surge um dilema: até onde pode ir o poder desses juízes e promotores? Até onde ele deve avançar para contribuir com a construção dessa República em formação?
Em outras palavras: os nobres fins justificam quaisquer meios? Claro que não! Essa é a mentalidade típica dos populistas, dos totalitários, dos revolucionários. O limite da ação dos juízes e promotores é sem dúvida a lei. Mas aí surge um novo dilema: e quando quem define essas leis é justamente o lado mais podre dessa equação? E quando a democracia já foi tomada pelo arbítrio dos legisladores, que garantem sua impunidade dentro de um sistema de privilégios?
Não há resposta fácil para esse dilema. Por isso é um dilema. Os poderes estão em choque e não há um poder moderador, o que tem levado o STF a exercê-lo, o que é sempre perigoso. Expressões como “estado de exceção” e “ditadura do judiciário” começam a aparecer nas acusações cruzadas, e isso tudo gera mais calor, coloca mais lenha na fogueira. Como evitar o pior? Como continuar com a depuração do sistema em putrefação sem jogar o bebê da República fora junto com a água suja do banho?
Reinaldo Azevedo tem sido uma das vozes mais estridentes na defesa de um legalismo exacerbado, em nome do estado democrático de direito. Isso fez com que ele atacasse o juiz Sergio Moro e defendesse a postura de Renan Calheiros em algumas ocasiões, o que despertou o ódio de muitos de seus antigos leitores. Entendo ambos: a preocupação dele com os eventuais abusos de poder do judiciário, e a revolta de seus velhos leitores, que enxergam nisso uma traição de uma “alma vendida”.
Talvez Azevedo esteja pecando por um “purismo” exagerado mesmo, ou talvez tenha outros interesses em mente quando pede cautela e freios aos líderes da Lava-Jato. Mas isso não torna seus argumentos imediatamente inválidos. E ele apresenta alguns argumentos bastante razoáveis de que esses abusos podem prejudicar justamente o combate à impunidade. Aqui, por exemplo, ele ataca a “porra-louquice” da operação da Polícia Federal no Senado, e aqui ele mostra como excessos legais dos juízes no caso de Demóstenes Torres serviram para aliviar sua barra.
Essa crise institucional foi tema da coluna de Merval Pereira hoje também. O jornalista toca no xis da questão quando expõe a falta de credibilidade de um dos poderes perante a sociedade, justamente o poder legislativo acostumado a pairar acima das leis que valem para os reles mortais:
A questão chegará ao plenário do STF, e há ministros lá que consideram que Renan Calheiros tem razão na reclamação, embora não necessariamente nos termos em que se posicionou. O desprezo de Calheiros pela primeira instância da Justiça brasileira é uma distorção de nossa cultura, pois até recentemente a possibilidade de recorrer indefinidamente até que qualquer questão chegasse à última instância, o Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) fazia com que a condenação em primeira instância perdesse o valor para os condenados.
Havia o hábito de desqualificar a condenação em primeira instância, na certeza de que nos diversos recursos a condenação seria reformada ou prescreveria antes do trânsito em julgado. Hoje, com a decisão do STF de que a condenação em segunda instância já pode levar o réu a cumprir a pena, mesmo que continue recorrendo, mudou esse desprezo pela primeira instância, sobretudo porque o Juiz Sérgio Moro em Curitiba está demonstrando que a Justiça pode ser rápida e eficaz.
Mas para os que têm o foro privilegiado, como deputados e senadores, o desprezo continua, pois só o STF os julga, e num ritmo bem mais vagaroso do que as instâncias anteriores. A crise institucional que pode resultar desse desencontro será conseqüência de uma leniência continuada em relação ao Poder Legislativo que está sendo quebrada pela Operação Lava Jato, provocando reações dos políticos, que não estão acostumados a serem alvo de investigações policiais.
Reinaldo Azevedo criticou Carmen Lúcia por agir de forma corporativista em defesa dos juízes, em vez de ter uma postura mais moderada e institucional, quando alegou que todos os juízes se sentiam agredidos quando um deles era chamado de “juizeco” pelo presidente do Senado. Mas os políticos agem de forma corporativista também, unindo-se contra o avanço da Lava-Jato, que tem servido para dar mais transparência à sociedade e reduzir a impunidade dos corruptos. E entre Renan Calheiros e Sergio Moro, não resta a menor dúvida de quem tem representado melhor, de fato, a sociedade brasileira hoje. Mesmo sem votos.
O dilema continua: precisamos respeitar as leis, e eliminar ou mudar as ruins, mas para tanto é preciso contar com os legisladores eleitos, num sistema podre e que garante justamente seus privilégios. Por isso mesmo aplaudimos e defendemos Sergio Moro e sua equipe, mesmo quando podem ser identificados eventuais abusos. Mas aí há o risco de o tiro sair pela culatra e, em vez de uma legítima República, criarmos uma “tirania judicial”. Como evitar esse risco?
Não tenho uma resposta satisfatória. Acho que chegará o dia em que até terei de adotar a postura de Reinaldo Azevedo, talvez para a revolta dos meus próprios leitores, clamando pelo cumprimento total dos ritos legais, mesmo reconhecendo que isso beneficia os autores desses ritos, os maiores alvos da Lava-Jato. Mas confesso que julgo estar muito cedo para isso.
Não porque os nobres fins justifiquem quaisquer meios, e sim porque os supostos excessos (há controvérsias) são defensáveis num quadro mais amplo, em que sabemos da forte resistência dos corruptos aos avanços do combate à impunidade de dentro do próprio sistema que precisa mudar. Não vejo tantos abusos assim a ponto de ficar chocado ou receoso.
Ou seja: não podemos contar com as raposas para arrumar o galinheiro e preservar as galinhas. E se for preciso fazer vista grossa a alguns supostos excessos dos “justiceiros” no momento de transição, esse é um risco que muitas vítimas das raposas estarão dispostas a correr, mesmo sabendo que há a possibilidade de os próprios “justiceiros” abusarem das galinhas depois.
O segredo da proteção das galinhas está na divisão de poderes, em sua descentralização, e hoje está claro que um dos poderes – o legislativo – concentra poder em demasia, e precisa ter suas asas cortadas pelo poder judiciário. Sem que o pêndulo extrapole para o outro lado, naturalmente. Eis o enorme desafio na construção dessa República nossa.
Rodrigo Constantino
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