Por Gabriel Wilhelms, publicado pelo Instituto Liberal
Assistir ao poder público, no caso a prefeitura do Rio de Janeiro, enviar fiscais para censurar livros em uma Bienal remete a um passado que deve para sempre continuar passado. É coisa típica de regimes autoritários. A decisão de Crivella, felizmente sustada por decisões dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, constituiu-se em um acinte à liberdade e uma expressão repugnante de homofobia.
Desnecessário dizer que a mão censora da prefeitura do Rio estava eivada de ilegalidades, uma vez que o argumento de que o livro em questão violava o ECA não foi, a princípio, objeto de decisão judicial. Não, o prefeito decidiu arbitrariamente que o conteúdo era “impróprio” e mandou censurar. E essa é a palavra: censura.
Os afoitos em defender o autoritarismo do prefeito em nome de se “proteger as crianças” por coerência não podem estar entre aqueles que com razão se voltam contra o estado-babá. Chama-se o beijo gay entre os dois personagens de impróprio por uma razão mais profunda, e não tem nada a ver com proteger as crianças. Aliás, proteger do quê? Você pode até impedir seu filho(a) de ler um gibi, mas não pode impedi-lo(a), felizmente, de presenciar um casal gay de mãos dadas ou trocando um beijo em público. Homossexuais existem. Você pode até tentar trancafiar sua prole numa redoma onde essa verdade trivial lhes será ocultada, mas cedo ou tarde isso irá falhar, afinal você não pode exigir que o resto do mundo renuncie a suas liberdades, desejos e preferências só porque você se sente incomodado.
É fácil pensar em beijos heterossexuais presentes em histórias, livros e filmes infantis, da Bela Adormecida sendo despertada pelo beijo do príncipe até o clássico, recentemente revisitado por meio de uma live-action, A Dama e o Vagabundo, em sua cena mais célebre. Alguém vê conotação sexual quando um príncipe beija uma princesa em uma produção da Disney? Há por trás disso operando por mensagens subliminares uma tentativa de “sexualizar” as crianças? Algum pai ou mãe corre para tirar os filhos da sala na cena do beijo adolescente? Bom, se o fazem, ainda assim o problema não é do estado.
Mas claro que nunca foi a intenção de Marcelo Crivella censurar tão inocentes e puros beijos heterossexuais. Colocando a coisa dessa forma, fica patente que a motivação dos envolvidos foi claramente homofóbica, e não há outra razão.
Se não bastasse ser homofóbica, o ato também foi estúpido por razões de impraticabilidade, que é comum quando estamos diante de fiscalizações burocráticas sem sentido. Nunca fui à Bienal, mas imagino que seja de praxe os livros estarem envoltos em plástico, lacrados, portanto, como é comum em livrarias, até mesmo para proteger as obras de mãos gordurosas e sujas. Esse detalhe já bastaria para tornar a ação de fiscalização no mínimo difícil. O que queria o prefeito? Que os agentes públicos saíssem folheando livro por livro até decidirem por meio de suas tão iluminadas mentes qual gravura ou parágrafo é impróprio para o deleite infantil ou púbere? Ou será que deveriam abreviar o trabalho ligando o alerta tão somente quando se deparassem com sinopses que evocassem a temática “LGBT”? Não que o livro em questão, objeto da polêmica, tivesse necessariamente temática LGBT. Nem tudo que tem homossexuais no meio é uma peça de militância, a propósito.
Com razão nos voltamos contra os exageros do politicamente correto, comumente associado à esquerda, que sempre vê malícia e desvios em obras com as quais crescemos vendo tão somente inocência. Há quem jure que assistir ao pica-pau pode transformar seu pequeno Enzo em um psicopata, por exemplo; mas a direita tem seu politicamente correto também, e a tentativa de censura de Crivella foi uma de suas toscas expressões. Tanto um como outro têm como desiderato a censura de alguma forma. Nesse caso, saiu-se do campo cultural e partiu-se para a censura estatal de uma vez.
*Gabriel Wilhelms é licenciado em Música e graduando em Ciências Econômicas, atua como colunista e articulista político.
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