Não sou daqueles que adotam uma mentalidade binária, tribal, do tipo “ou está 100% comigo, ou totalmente contra mim”, ou é “amigo” ou “inimigo”. É essa postura que já me permitiu elogiar certas coisas ditas por Olavo de Carvalho, mesmo quando este partia para agressões pessoais. É também o que me faz buscar sentido até mesmo na esquerda, ainda que seja mais fácil encontrar uma agulha num palheiro. E ela que faz com que eu continue lendo Reinaldo Azevedo, em vez de simplesmente demonizá-lo, apesar de manter ressalvas e suspeitas quanto às suas escritas recentes. Deixo a briga de egos para os outros.
Vamos, então, aos argumentos. Em sua coluna de hoje na Folha, Reinaldo se diz um conservador, depois um liberal, e ataca todos aqueles que desprezam o Poder Legislativo, tanto “do lado de lá” como “do lado de cá”. Diz ele:
Carros incendiados, pancadaria, pedradas, facada… Eis as esquerdas à porta do Senado. Elas não reconhecem a legitimidade da Casa para votar a PEC do Teto de gastos. […]
Na Câmara, vota-se o tal pacote das medidas contra a corrupção, originalmente propostas pelo Ministério Público Federal. A força-tarefa está na raiz da prisão de empresários; destruiu a reputação de larápios; pode vir a encarcerar Lula; desmoralizou o PT…
Assim, se essa turma apresenta dez propostas contra a corrupção, que importa que quatro delas sejam fascistoides, mostrem-se irrelevantes no combate à impunidade e, na prática, só agridam direitos fundamentais?
Os antipetistas lava-jatistas ainda são pouco hábeis na arte de intimidar o Congresso, mas podem promover um cerco virtual à Câmara nas redes sociais, como se fez. É bem verdade que já há procurador querendo lutar boxe…
A turma “do lado de lá” não reconhece a legitimidade do Senado para votar um pacote contra os gastos. A turma “do lado de cá” não reconhece a da Câmara para alterar o pacote do MPF.
Posso entender – e até aceitar – tais argumentos. Também me incomoda o clima de um “messias salvador da Pátria”. Também considero arriscado o eventual abuso de poder por parte do Judiciário. Também acho que não há saída fora da democracia, apesar de ela estar dominada por safados hoje, e por isso a pressão externa, das ruas, faz-se totalmente necessária.
João Luiz Mauad publicou um texto no Instituto Liberal em defesa da coibição de abusos por parte de promotores. São argumentos bons, e de cunho liberal. Vão ao encontro dos alertas feitos por Reinaldo Azevedo, mas sem errar no tom, como este tem feito, de forma arrogante demais, afetada demais, calibrando mal suas prioridades.
E esse é o meu ponto aqui: ainda que entenda as preocupações deles, ainda que também queira limitar o poder do Ministério Público e reforçar a mensagem liberal de que ninguém está acima das leis, não consigo aceitar que o foco deva estar nisso neste momento. Não quando os deputados, acuados e com medo da prisão, agem claramente para burlar as leis, fugir delas.
Sergio Moro não é um Robespierre, não tem abusado das leis, e merece todo o apoio da sociedade agora, pois tem sido alvo da articulação de gente poderosa que pretende preservar a impunidade. Mas Reinaldo tem usado seu espaço mais para atacar Moro do que para atacar Renan Calheiros, e isso é simplesmente absurdo. Ontem mesmo, após novo ataque, respondi no meu Facebook:
Se Reinaldo Azevedo acha que o momento de se propor as coisas não tem relevância alguma, experimenta propor um jogo de poker com os amigos logo depois da mulher avisar que tem jantar na sogra no mesmo dia. Claro que o momento importa! No mais, RA viu outro debate, pois no que eu vi, Sergio Moro foi bem claro sobre os riscos do projeto. Mas o legalista formador de opinião tem visto mais ameaça em Moro do que em Renan…
Moro foi direto ao ponto quando falou do perigo das “emendas da meia-noite”, e alegou que o debate está ocorrendo em momento errado, o que pode passar uma mensagem equivocada para a população. Como que o timing não tem importância? Helio Saboya Filho, em artigo publicado hoje no GLOBO, vai na mesma linha:
Quase todos os envolvidos nas delações estão (ou mantêm estreitíssimas ligações) com o poder econômico e político vigente, sendo de uma ingenuidade que tangencia a curatela ignorar ou subestimar o esprit de corps de uma elite que, mais do que solidária entre si, é profundamente convencida da superioridade de seus próprios interesses sobre os desejos da nação.
O caixa dois já era previsto como delito na Lei 4.737/65. A iniciativa de “retipificá-lo” (a rigor, o que não é caixa um, caixa dois é), acrescentando-lhe o penduricalho da distinção do caixa abastecido com dinheiro legal do com dinheiro ilegal, arma a arapuca argumentativa de que tal prática não era crime. Se vingar, quem não participou de esquemas de contabilidade paralela até hoje, na teoria, foi um cidadão exemplar e, na prática, um tolo.
Não bastasse isso, surgiu a bastarda proposta de anistia propriamente dita, pretextada para resguardar a governabilidade. Afinal, o Brasil poderia não sobreviver, não é mesmo?
Descartada pelo escândalo em se que traduz, e não pelo insípido pronunciamento coletivo do trio Temer, Renan e Maia, optou-se por um plano B: a responsabilização criminal de juízes e promotores no exercício de suas funções. Não que não seja legítimo debatê-la. Mas em uma Casa sem ratazanas encurraladas. Sob pena de o resultado ser a proibição do uso da ratoeira.
Straight to the point, como dizem os americanos. “Não que não seja legítimo debatê-la”, diz o advogado. E é legítimo! Azevedo e Mauad estão certos nisso, sem dúvida. Conhecemos casos de abusos de poder, sabemos que o Poder Judiciário é uma caixa preta, temos acesso a salários absurdos com base em “extras” indecentes, precisamos colocar todos restritos aos limites das leis. Ninguém vai aplaudir uma ditadura de toga!
Tudo isso é verdade. Mas pergunto: o momentum não tem importância? Quando sabemos que há várias articulações nos bastidores para melar a Lava Jato, a melhor coisa que já aconteceu em nossa política nas últimas décadas? Os promotores não são virgens vestiais, mas alguns liberais têm agido como se fossem. Os mais puros legalistas num país mais sério do que a Suíça, com instituições mais sólidas do que a Austrália, com uma democracia mais enraizada do que os Estados Unidos. Sério?
A classe política – ou boa parte dela – declarou guerra a Sergio Moro e à Operação Lava Jato. Se alguém acha que a nossa prioridade é debater os eventuais excessos desses juízes e promotores, e não as tentativas escancaradas ou veladas de abuso de poder por parte do próprio Congresso, então só posso concluir que se trata de uma sensibilidade democrática muito mal calibrada.
A democracia não vai sobreviver justamente se a Lava Jato for enterrada, como querem os caciques políticos. Eis o verdadeiro risco que corremos hoje, não o de um estado policialesco dominado por juízes e promotores moralistas se sentindo representantes diretos do povo, ignorando a democracia representativa. Para esta ser fortalecida, antes é preciso tirar as ratazanas de lá. O presidente do Senado ainda é Renan Calheiros, for Christ sake!
Rodrigo Constantino
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