Por Ricardo Bordin, publicado pelo Instituto Liberal
– Vamos pintar esta parede de azul.
– Acho melhor pintar de vermelho.
– Não, azul vai ficar bem melhor.
– Tá bom, dá aqui que eu mesmo faço.
– Peraí, mas você está pintando tudo errado, tá ficando uma porcaria assim!
– Tá vendo, eu disse que vermelho era muito melhor…
Parece brincadeira, mas é o que resta fazer quando brincam com a inteligência alheia. Mal as cabeças de líderes do PCC no presídio de Manaus haviam rolado (literalmente), e já havia oportunistas (inclusive o próprio Ministro da Justiça) bradando que a unidade prisional era administrada por uma empresa privada – o que justificaria, quem sabe, a “reestatização” destas unidades prisionais e a decorrente abdicação deste “modelo perverso”, que põe a vida dos pobres encarcerados abaixo da incessante busca dos empresários gananciosos pelo lucro. Na eterna disputa entre estatizantes e privatizadores, ponto para os amantes do Estado.
Ponto negativo, só se for. Da mesma forma que ocorre na anedota supracitada, a melhor forma de mostrar que fazer do seu jeito “não funciona” é colocá-lo em prática da pior forma possível, e depois alegar que “não dá certo assim, eu não disse?”. Nada como um dia após o outro (ou um morticínio após o outro, no caso) para provar que pintar paredes de cadeias de vermelho-sangue não é prerrogativa de empresas terceirizadas.
A média de detentos assassinados no Brasil é superior a quatrocentos por ano. Ora, como apenas 52 das mais de mil unidades prisionais brasileiras estão sob gestão privada, fica claro que a administração pública desempenha o papel principal nesta carnificina de condenados pela Justiça em nosso país. Tome-se como exemplo o massacre ocorrido em Roraima que levou para a terra dos pés juntos 33 presidiários, na Penitenciária Agrícola do Monte Cristo (Pamc), ou as típicas cenas de Brazilian Horror History que se passam, vez por outra, em Pedrinhas no Maranhão, e tantos outros – a tal ponto que a PGR cogita até mesmo pedir intervenção federal em quatro estados onde a situação é mais periclitante. É natural, pois, que o falido sistema prisional brazuca tenha apelado para a iniciativa privada.
Mas se for para privatizar, privatiza direito, poxa. Primeiramente, estamos falando de um contrato administrativo com superfaturamento saltando aos olhos, pois o custo mensal de um preso no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, gerido pela empresa Umanizzare, representa nada menos do que o triplo do que costuma gastar o estado de São Paulo com o mesmo intuito. Onde estava o Tribunal de Contas do Amazonas que “não viu” isso?
E é claro que, tão certo quanto “onde há fumaça há fogo”, onde há superfaturamento, há agentes do Estado se dando bem, em conjunto com o “capitalista” de compadrio, seja na forma de “doações eleitorais” suspeitas, seja na forma de um agrado para Juízes e Magistrados aliviarem a pena dos companheiros meliantes. Esta prática contumaz, aliás, constitui o mais significativo argumento para que as transações comerciais efetuadas pelos governos, nas três esferas e poderes, sejam limitadas a um mínimo necessário, mormente em atividades onde o sistema de concorrência do livre mercado seja, a princípio, impraticável – certamente, a meu ver, estamos diante de uma delas, muito embora não seja esta uma opinião unânime (especialmente entre os liberais).
Diante deste quadro de evidente favorecimento mútuo entre a empresa contratada e o estado contratante (com o dinheiro do pagador de impostos no meio, bancando tudo), fica difícil imaginar que as cláusulas estipuladas entre as partes pudessem exigir que o prestador de serviços viria a ser penalizado financeiramente em caso de episódios como a carnificina em Manaus, fugas (somente nesta oportunidade, mais de 150 criminosos escaparam), fraqueamento de armas ou celulares no interior da instituição, ou de condições precárias de vivência.
Pior: ainda que houvesse essa previsão no papel, certamente ela não seria reivindicada, por meio de multas ou até mesmo rescisão contratual. Desta forma, que incentivo tinha esta empresa para melhorar os serviços prestados, sabedora de que, tendo em vista seus laços com os gestores públicos, dificilmente seria desbancada da concessão? Que riscos ela corria de experimentar prejuízo ou ver seu negócio ir à bancarrota? E dada a facilidade com que o açougue improvisado foi armado no presídio, fica fácil deduzir que o local era a verdadeira casa da mão Joana. Mas não custa conferir o cenário encontrado por lá – e que se repete na quase totalidade das casas de detenção do país:
Mas digamos que, hipoteticamente, estivéssemos diante de um caso legítimo de delegação de serviços públicos: a empresa em questão possuía a responsabilidade contratual e a competência legal para evitar que esse alarido todo ocorresse? Ora, os serviços acordados entre as parte resumiam-se, tão somente, a limpeza e conservação predial; manutenção dos equipamentos e estrutura; manter em perfeito funcionamento o sistema de segurança eletrônica, incluindo o sistema de câmeras de vídeo; e só! Trata-se, pois, de um contrato de “cogestão”, no qual o Estado constrói a unidade e a dirige, confiando a terceiros apenas atividades-meio, como as listadas supra.
Quer dizer, se havia superlotação nas celas, que culpa pode ser atribuída ao contratado neste quesito? Se a edificação não foi concebida para que presos de maior e menor periculosidade ou de facções rivais ficassem apartados, que culpa tinha o contratado? Se a empresa não tem como obrigar os meliantes a laborar para bancar indenizações às vítimas de seus crimes, uma vez que nossa carga magna proíbe trabalhos forçados, qual sua parcela de culpa no fato de que eles passam o dia inteiro planejando suas próximas delinquências? Se nossa legislação penal é tão branda que motiva tanta gente a cometer delitos – e a entrar e sair da cadeia como se uma porta giratória estivesse instalada na entrada –, o que resta ao terceirizado fazer senão ver o circo pegar fogo diante do quadro de impunidade generalizada sob a qual não possui ingerência alguma?
E ainda que o Estado, porventura, tivesse a intenção de transferir por completo a administração carcerária a agentes privados, ficaria apenas na vontade: a previsão legal, no que se refere à delegação do poder de polícia a particulares, é proibitiva. A lei 11.079/2004, em seu art. 4º, III, ao enumerar as diretrizes gerais das Parcerias Público-privadas (PPP’s), é de clareza solar ao proibir a delegação do poder de polícia à pessoa jurídica de Direito Privado:
Art. 4º Na contratação de parceria público-privada serão observadas as seguintes diretrizes:
III – indelegabilidade das funções de regulação, jurisdicional, do exercício do poder de polícia e de outras atividades exclusivas do Estado;
Ou seja, não adianta culpar a privatização pelas capas de revista ensanguentadas desta semana, sob o risco de clamarmos, sob os mesmos argumentos, que também empreiteiras sejam estatizadas, correto? E também distribuidoras de merenda escolar. E fabricantes de material hospitalar. Neste ritmo, o comunismo estará logo aqui na esquina. O quiproquó reside nas normas convidativas ao banditismo e na mentalidade tolerante que não permite alterá-las.
Não tem jeito: não há solução de curto prazo fácil ou barata. É preciso, sim, em um primeiro momento, coçar o bolso (como anunciou Michel Temer cinco dias antes da chacina em Manaus) e criar novas vagas em presídios, até mesmo porque o Brasil, que ocupa apenas a 32º no ranking de país que mais prendem, soluciona somente 8% dos homicídios cometidos. Ou seja, tem muito criminoso à solta ainda por aí que precisa ser encarcerado, até para desestimular a prática de delitos.
Ainda, o mais breve possível, é necessário reformar o código penal e a lei de execuções penais, para que os infratores sintam algum receio de serem capturados pelo polícia – ser preso, nos dias atuais, é só mais um dia de “trabalho” normal na vida do vagabundo médio. Não deixar nossas fronteiras a deus-dará, de modo que FARC e FDN negociem armamento pesado e entorpecentes à luz do dia, é medida que também ajuda.
É claro que muitos vão defender a rota oposta, ou seja, afrouxar as leis penais para “esvaziar as cadeias” e evitar que episódios como esse se repitam, especialmente relativizando todo o caos que a legalização do comércio e do consumo de drogas, dentre outras excrecências aventadas, pode trazer à sociedade. Se apenas os presos que escaparam quando da “insurreição” em Manaus – que de rebelião não tinha nada, pois se tratou, pura e simplesmente, de execução de grupo rival – cometeram doze assassinatos nas primeiras horas em liberdade, imagine o que aconteceria se, do dia para a noite, eles se vissem livres de suas condenações. Melhor nem pensar.
Pior ainda é ter que debater com os defensores da bandeira da reintegração dos marginais à sociedade. Esquecem os desavisados que, de forma muito objetiva e direta, a prisão serve para 1) livrar as pessoas ordeiras do convívio com o criminoso, impedindo que ele siga fazendo novas vítimas; 2) gerar um efeito pedagógico sobre os demais cidadãos, provocando-lhes o temor de terem o mesmo destino; 3) aí sim, como uma terceira preocupação, permitir que estes indivíduos, tão logo seja possível crer que reúnem as condições de retornar ao convívio social, relaxar suas penas – e, para isso, são necessários programas educativos e não permitir que o encarcerado fique misturado com bandidos de pior estirpe, sob o risco de formar as famigeradas “pós-graduações” do crime.
Mesmo porque, como decorrência do estado de direito, os condenados pela Justiça devem cumprir tão somente a pena a qual lhes cabe pelo texto legal. Se a restrição de liberdade é a penalidade que lhes foi aplicada, não cabe ao Executivo submetê-los a todo o tipo de bizarrice durante seu tempo de reclusão – tipo assim, rolar de cima de um telhado em dias de rebelião.
Chama a atenção que prisões-modelo (APAC – Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), como o de Santa Luzia, região da Grande Belo Horizonte, não registram mortes de internos nem são alvos de rebeliões. E não é difícil entender o porquê: os detentos encaminhados para estas instituições já estão em processo de reabilitação avançado ou cometeram crimes de menor potencial lesivo. Ao que cabe, pois, perguntar: faz algum sentido tentar reabilitar estupradores de crianças e assassinos em série para que venham, quem sabe, morar na sua vizinhança? Ah, a falta que fazem a prisão perpétua e a pena capital. Não concorda? Calma que o Champinha reabilitou-se recentemente, aceitou Alá no coração e tá vindo dirigir a van da sua filha para o colégio, querido. E olha o preconceito, hein?
Longe de mim, porém, emular o comportamento de uma considerável fatia dos brasileiros e celebrar estas mortes ocorridas nos presídios – e até pedir bis. A uma porque tais ocorrências demonstram o largo poder destes líderes de facções, como Marcola e Gelson Carnaúba, os quais possuem, a seu comando, exércitos sanguinários e obedientes. Um assobio deles e nossas ruas podem virar Ruanda. A duas porque a sensação de impunidade no Brasil (fomentada, ainda, pelo desarmamento da população) é um fábrica de facínoras que opera 24/7, e não há morticínio que dê jeito de reduzir a criminalidade como um todo – no máximo proporciona um respiro. Por fim, tais eventos acabam comovendo (pasmem) ainda mais os defensores dos direitos humanos dos delinquentes, motivando decisões como a que mandou para casa 161 prisioneiros de Roraima, a fim de “prevenir novas chacinas”. Agora o PCC e a FDN já sabem: chacinas abrem as portas das cadeias. Uma degola equivale a um alvará de soltura. Parabéns meritríssimo (correta a grafia)!
Traz alguma esperança residual, em meio a este turbilhão da crise penitenciária, o post publicado por uma Juíza Gaúcha. Ainda dá pra sonhar com dias melhores – para nós, e dias bem piores para a bandidagem. Não adianta o Estado brasileiro querer terceirizar sua responsabilidade em manter a ordem e gerar segurança – ou até adianta, se fizer direito…
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