Por Jocinei Godoy, publicado pelo Instituto Liberal
Começo este texto com uma “profecia” certeira do grande poeta e crítico literário T. S. Eliot (1888-1965) sobre o que se poderia considerar acerca da decadente ideia de cultura: “[…] Não vejo razão por que a decadência da cultura não devesse ir muito mais longe, nem por que não possamos prever um período, de alguma duração, do qual se pudesse dizer que não tem cultura.”[1] Essa citação de Eliot soa como um estrondo ao ouvido do leitor mais atento ao atual estado de coisas que ainda podemos chamar de cultura.
Foi pelas lentes do escritor peruano Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura, que pude notar de forma mais clara o poço sem fundo no qual nossa cultura tem sido lançada neste tempo. Llosa reconhece a civilização deste tempo como “a civilização do espetáculo”, nome dado a uma de suas principais obras de crítica literária na atualidade. Nas palavras do prêmio Nobel, a civilização do espetáculo é “a civilização de um mundo onde o primeiro lugar na tabela de valores vigente é ocupado pelo entretenimento, onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal.”[2] Neste caso, aquilo que antes era tido como nobre, culto, elevado, belo, etc., passou a ser relativizado, sobretudo, por ideais progressistas que atuam como um veneno que infecta e mata lenta, gradual e continuamente.
Os mais apaixonados pela cultura de hoje que me perdoem, mas percebo que a famigerada “democratização da cultura” foi e continua sendo um desses venenos que está matando a cultura atual. Não que eu seja contra a “democratização” de qualquer coisa. Entretanto, concordo com Vargas Llosa sobre a desconfiança quando ideologizações da vida comum, em especial, por anseios progressistas, se apossam irresponsavelmente desta palavra. Segundo Llosa, na tentativa bem intencionada – creio que tenha sido – de transformar todas as pessoas em experts culturais, os níveis de aprofundamento intelectual e de reflexão mais refinada para a apreciação cultural foram reduzidos a patamares tão inferiores que, hoje em dia, tudo é arte e nada é arte. Falar em arte associada à beleza ou à existência da “alta cultura” soa quase como um sacrilégio, principalmente, aos operadores acadêmicos da cultura da transgressão[3] na arte.
Este achincalhamento da cultura afeta todas as áreas da vida comum. Não escapa uma sequer. Para não ser enfadonho, tomemos como exemplo as notícias jornalísticas que “bombam” na mídia brasileira e mundial. Um dia desses os principais veículos de comunicação estavam em polvorosa com os acontecimentos da vida íntima envolvendo o atacante da seleção brasileira Neymar Jr. e Najila Trindade. Não porque estavam preocupados com a veracidade dos fatos, mas, por pura exposição da intimidade da maior celebridade do futebol brasileiro na atualidade. Logo depois, uma tradicional revista publicou uma matéria cujo título “espanta” qualquer cidadão comum: “A cordial primeira-dama veste lingeries” – queriam que ela vestisse cuecas? Nos últimos dias assistimos à canalhice de outra grande revista, e de seus envolvidos, na trama mentirosa do repórter que dissimulou ser um aluno de sessões de coaching on-line da psicóloga Heloísa Bolsonaro, esposa do deputado Eduardo Bolsonaro, a fim de expor publicamente o conteúdo privado do atendimento feito por Heloisa ao repórter disfarçado.
Esta matéria é paradigmática por, pelo menos, duas razões. A primeira delas revela uma sede de parte da mídia pela busca de vazamentos da intimidade de celebridades, sejam elas quais forem, nunca antes vista na história. É óbvio que a mídia acompanha e coopera com o espírito da época oferecendo matérias permeadas de superficialidades e facilidades proporcionadas pela dinâmica das imagens que não exigem qualquer tipo de reflexão. A grande massa se alimenta destas banalidades midiáticas ao mesmo tempo em que alimenta as engrenagens da cultura do entretenimento. A segunda delas diz respeito à faceta imoral e perversa de parte da mídia canalha. Para a obtenção de imagens e informações privadas com o intuito de simples exposição ou assassinato de reputações, não há escrúpulos ou apreço por qualquer baliza ética, desde que o resultado almejado seja alcançado. Entre Fefitos, Catracas Livres e afins, há ainda quem argumente em defesa do indefensável, absolutizando a liberdade de expressão ou relativizando-a quando lhe convém.
Talvez, esta breve denúncia do contexto social do qual fazemos parte lhe soe um tanto demasiada. Porém, em tempos onde as revistas de fofocas continuam a ser vendidas como água nos sinaleiros em dias de calor e as matérias sobre vazamentos íntimos de celebridades “bombam” nas redes sociais, creio que não haja nenhum exagero. Na melhor das hipóteses, um dos alentos neste ano de 2019 foi ver que a audiência de programas inúteis como o BBB19 alcançou a pior média de audiência desde o seu lançamento em 2002. Justiça seja feita, grandes nomes têm se levantado e segurado a bandeira do resgate da alta cultura em nosso país. Quiçá este seja um prenúncio de que dias melhores virão. Enquanto esses dias não chegam, decerto a melhor expressão a que podemos nos referir à cultura atual, à exceção dos bastiões da alta cultura, seja a cultura da incultura, isto é, a celebração da estupidez como forma de cultura.
[1] Eliot. T. S. Notas para uma definição de cultura. São Paulo: Editora Perspectiva, 1988.
[2] Llosa. M. V. A civilização do espetáculo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
[3] Para melhor entender este conceito ler o artigo “Como a transgressão se tornou um cliché da arte contemporânea” de Leandro Narloch em https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/politicamente-incorreto/como-transgressao-se-tornou-um-cliche-da-arte-contemporanea?ref=link-interno-materia-amp
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