Por Lucas Berlanza, publicado no Instituto Liberal
“Intelectuais, profissionais liberais, estudantes, fazendeiros, empresários e jovens de todo o Brasil que desprezais as carreiras na Nomenklatura e pretendeis enriquecer na iniciativa privada, uni-vos! Nada tendes a perder, a não ser as algemas que vos são impostas pela pseudo-elite política, os ladrões de colarinho branco e os trogloditas que pretendem manter a nacionalidade no patrimonialismo selvagem!” Com essas palavras provocadoras e enérgicas, que expressam muito bem a tônica do opúsculo, o embaixador e diplomata aposentado José Osvaldo de Meira Penna (1917) põe um ponto final ao seu livro Decência Já!.
Editado e vendido pelo Instituto Liberal, esse trabalho é uma coletânea de crônicas e comentários publicados em jornais como O Estado de São Paulo, O Globo, A Tarde, Jornal da Tarde e Digesto Econômico, todos datados do período que vai do final dos anos 80, acompanhando o processo de início da Nova República pós-regime militar, até o governo Collor. Representante do Brasil em diversos países e testemunha vigilante da história, Meira Penna aí se revela com toda sua personalidade intensa e sua bagagem teórica profunda. Parece curioso perceber, nas referências constantes de Meira Penna aos economistas da Escola Austríaca como Hayek e Mises, aos teóricos liberais clássicos como Locke, Adam Smith e Bastiat, e a Edmund Burke – a quem Penna menciona como “um dos maiores parlamentares britânicos e um dos teóricos do pensamento liberal-conservador”-, o tipo de discurso e bibliografia que anima o movimento moderno de pensamento que oferece uma alternativa ao estatismo esquerdista dominante no país. Com virulência e sem papas na língua, Meira Penna se dedica a bombardear as propostas hegemônicas, naquele momento em que se tentava esboçar um novo rumo para o país. Não faltam críticas duras nem mesmo a figuras que costumam ser muito queridas, como a do peemedebista clássico Ulysses Guimarães.
Entre todos os diversos assuntos que Meira Penna aborda, alguns se destacam pela recorrência nas inspiradoras páginas de seu livro: a Constituição de 1988, o “democratismo” e o patrimonialismo no Brasil – este último, comparado várias vezes ao longo das crônicas à realidade russa, que o autor parece conhecer muito profundamente. O grande problema do Brasil, na sua tentativa de se desgarrar do peso do Estado colossal, é o que ele chama de “ideologia nacional-socialista”, que é “capaz de unir, num consenso aberrante, militares de linha dura, empresários parasitas de reservas de mercado, fazendeiros nordestinos e políticos fisiológicos” e “representa uma verdadeira enfermidade coletiva de prognóstico imprevisível”. Essa tendência, estimulada pela longa trajetória de confusão entre o universo político e as vantagens privadas obtidas via máquina estatal, continuou sendo a inspiração para a chamada “Constituição cidadã” de 88. Penna observou que essa realidade se intensificava com a articulação entre um importante investimento cultural e ideológico, ancorado em Gramsci e na Escola de Frankfurt (inclusive, fazendo citações bem sugestivas ao então secretário de Cultura Rouanet, inspirador da lei de mesmo nome), isto é, a base metódica da “intelligentsia botocuda”, com a “nova classe tecnoburocrática e política”.
Ele ainda faz adições pertinentes de que talvez não desconfiássemos, como a importância do pensamento de Hobbes – que, em que pese tenha ficado identificado com o período do absolutismo, aparece aqui, em análise que merece ser lida na íntegra, como paradigma originário para a defensa de um Estado de atribuições restritas. O grande tema de Penna é mesmo, porém, essa tensão entre as instituições, devendo ser mantidas em seu justo limite e não pesando sobre os ombros dos cidadãos, e o caráter que, lamentavelmente, parece ter prevalecido na Constituinte da Nova República: “a atmosfera geral de democratismo romântico, reacionário e estatizante” que a contaminou, imbuída do espírito “construtivista” que Hayek tanto criticava, crentes que estavam os constituintes de que as linhas de seus decretos naquele documento inchado podiam transformar magicamente a realidade. Crentes em que, abarrotando um pedaço de papel com reclames por “direitos”, esses “direitos” estariam automaticamente concretizados, e isso teria mais valor do que a enxuta e basicamente intocada Constituição americana, ou a inglesa, sequer escrita, que deita suas raízes na Carta Magna do século XIII.
Meira Penna, defendendo a monarquia parlamentar, mas, fundamentalmente, a libertação das forças produtivas da sociedade e a desconcentração de poderes, mesmo aqueles que excessivamente a retórica “democratista” rousseauniana e revolucionária francesa que absorvemos intenta colocar nas mãos das massas abstratas, empreende uma análise minuciosa de aspectos em que as nossas instituições e legislações poderiam melhorar para nos permitir um respiro desse cenário. Em um passeio temático que ainda conta com citações de Ruy Barbosa, Milton Friedman, Buchanan e Karl Popper, bem como uma constelação de outras figuras, nacionais e estrangeiras, Decência Já! é, de muitas maneiras, um dos mais importantes “pequenos grandes” livros que já tivemos a oportunidade de ler. Com uma linguagem mordaz e uma sucessão de tiros certeiros de fazer inveja, o lendário Meira Penna prova, nas poucas páginas desse título, que seus pensamentos e alertas seguem, como poucos – e diga-se, de passagem, tristemente – atualíssimos.
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