Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Democracia, o Deus que Falhou – A economia e a política da monarquia, da democracia e da ordem natural, lançado em 2001 pelo libertário alemão, adepto da Escola Austríaca e pupilo de Murray Rothbard, Hans-Hermann Hoppe, é, sem qualquer discussão, um petardo de intrepidez.
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Ao abordar o socialismo e o estatismo, Hoppe procura demonstrar que estão errados aqueles que mencionam a restrição à democracia no socialismo como um dos seus problemas – já que, por óbvio, se a democracia é um mal, não é um mal a sua restrição. O verdadeiro problema dos regimes socialistas é apostar no planejamento econômico centralizado e na limitação da livre iniciativa, expandindo-se violentamente sobre a propriedade privada, que exige, para se caracterizar como tal, sua livre utilização pelos proprietários.
Já os liberais clássicos, de acordo com o diagnóstico de Hoppe, experimentam um declínio global devido à incoerência de suas ideias. O grave erro dos liberais teria sido, ao mesmo tempo em que se esforçaram por defender as liberdades individuais e a propriedade privada, admitir a teoria do governo. Ao aceitar o governo como protetor da segurança e da propriedade, os liberais teriam aberto a porta para a sua maximização como destruidor de tudo aquilo que teoricamente deveria proteger. Alguns entre os próprios liberais, como Hayek, teriam, na verdade, se transformado em autênticos “sociais democratas”, aceitando inovações do Estado-de-bem-estar-social.
Finalmente, com relação ao conservadorismo, Hoppe considera autores como Russell Kirk e Michael Oakeshott (respectivamente, um conservador americano e o outro britânico) basicamente superficiais, mas, entendendo como “conservador” – por oposição ao que chama de “movimento neoconservador americano” (centrado em figuras como Irving Kristol, William Buckley e até Ronald Reagan), tomado pelo que seria um espírito cruzadista por espalhar a democracia liberal pelo mundo, e ao que chama de “conservadorismo populista” e protecionista de um Patrick Buchanan – “alguém que acredita na existência de uma ordem natural, de um estado de coisas natural, que corresponde à natureza das coisas, que se harmoniza com a natureza e o homem”, acredita que aquele que assim pensa deve se aliar ao pensamento libertário por ele preconizado. Afinal, os conservadores precisam entender que a maior ameaça a essa ordem natural é justamente a democracia, que os impede de, “de acordo com os princípios dos contratos”, expulsar “os habituais democratas, comunistas e adeptos de estilos de vida alternativos” completamente da sociedade, o que a está levando à degeneração e à ruína moral, sob o impacto do Estado crescente. Estilos de vida “avessos à família e a tudo que é centrado no parentesco”, tais como “o hedonismo, o parasitismo, o culto da natureza e do meio ambiente, a homossexualidade ou o comunismo”, ele diz sem peias, “terão de ser também removidos fisicamente da sociedade para que se preserve a ordem libertária”.
Considerações pessoais
O objetivo principal aqui é dar a conhecer o conteúdo do livro, mas, resumidas as teses de Hoppe, deixamos agora que o leitor saiba, em linhas gerais, a nossa opinião sobre elas, considerando-se as limitações profundas de espaço deste artigo e a complexidade dos problemas filosóficos considerados. Mesmo após fechar as páginas de sua obra emblemática e reconhecer o quanto ela é fascinantemente polêmica, não nos convertemos ao anarcocapitalismo. Respeitando os amigos profitentes dessa crença, o anarquismo de mercado permanece, aos nossos olhos, uma fantasia racionalista que despreza os elementos culturais, históricos e simbólicos que corporificam uma nação, considerando as fronteiras e unidades políticas quase como mera construção fictícia facilmente fragmentável (o que é, a nosso ver, falso) e depositando confiança em uma suposta “ordem natural”, na verdade, inexistente na natureza, onde quer que se procure, pois que na natureza tudo nos pode ser tirado e a nada podemos recorrer contra isso que não à força.
Com efeito, também não parece suficiente a teoria da apropriação direta dos bens da natureza como uma justificativa absoluta e definitiva da propriedade, do ponto de vista prático, de vez que, na vida “natural”, nada efetivamente a garante, fazendo-se necessária uma institucionalização e uma organização social – por outra, a existência de uma “sociedade”, de uma relação com as outras pessoas – para que um direito a ela seja consagrado e reconhecido. Um direito pode até ser visto como inerente ao humano, mas é preciso haver instrumentos relacionais e de força que levem esse reconhecimento a efeito.Acerca da questão do imposto como roubo e da concepção de Mises quanto à anarquia, a dimensão deste texto se alongará demais se as enfrentarmos; preferimos remeter os leitores às reflexões de nosso amigo Guilherme Cintra, que reuniu argumentos do economista austríaco contra essa doutrina política em seu blog.
Limitamo-nos a pontuar que o mundo quase feudal que Hoppe desejaria ver realizado, para além das limitações físicas complicadas que imporia e de sua discriminação sistemática (profundamente antibrasileira, aliás, diga-se de passagem, para quem está acostumado a viver em um país onde tantas diferenças convivem sem grandes problemas), concederia um poder imenso a agências seguradoras que, na vida real, muito improvavelmente se restringiriam às regras do mercado que Hoppe julga absolutas e soberanas. O anarcocapitalismo parece desprezar a vocação humana para o poder, tal como a desnudou Ives Gandra em seu Uma breve teoria do poder. Fala em seguradoras muçulmanas (regidas pela lei islâmica) e seguradoras católicas, por exemplo, negociando entre si para chegar a uma lei comum em favor de seus clientes, como se seguradoras operando para o Islã radical fossem compreender a linguagem de uma negociação em questões cruciais.
Também parece muito conveniente reconhecer que vivenciamos um desenvolvimento notório do capitalismo e das riquezas nos últimos séculos, desconsiderando completamente a configuração dos princípios constitucionais e do Estado de Direito como elementos importantes para viabilizar esse desenvolvimento, trazendo em seu bojo as regras que sancionam os contratos e as prerrogativas individuais, a mobilidade social (que parece incomodar muito o Hoppe) e o incentivo liberal ao lucro. Nesse aspecto, fico com liberais como Donald Stewart Jr., fundador do Instituto Liberal. O principal problema dessas teses anarquistas, porém, sem pretendermos nos estender muito em uma discussão que nos parece a do sexo dos anjos – e que, francamente, por isso mesmo não nos interessa muito estender -, é a completa ausência de qualquer perspectiva prática para a sua implementação.
Basta verificar aquele que consideramos o trecho mais fraco de todo o livro, que é o que segue: “O governo deve adotar uma constituição favorável à propriedade privada e declará-la como a imutável lei fundamental do país inteiro”, sancionando o fim de qualquer atentado contra a liberdade de dispor dela. “Subsequentemente, o governo, estando agora sem bens, deve declarar a sua própria existência como inconstitucional – na medida em que dependa da aquisição não contratual de propriedades, isto é, da tributação – e abdicar de seu poder”.
É de uma ingenuidade intrigante acreditar que tal coisa seria praticável. Em primeiro lugar, “adotar uma constituição”, em qualquer que seja o país, não é exatamente a coisa mais fácil do mundo. Demanda, na pior das hipóteses, uma revolução. Em segundo lugar, por mais que, como aposta Hoppe, haja lideranças e intelectuais convencidos das maravilhas do mundo anarcocapitalista, um governo não pode declarar sua própria inconstitucionalidade, porque se o fizer, ora bolas, simplesmente não há como garantir o cumprimento da Constituição. No momento em que ele supostamente abole a si mesmo, não há mais códice magno. Evidentemente haverá aventuras para ocupar o vácuo de poder no minuto seguinte. É uma receita que, em realidade, não passa de uma “não-receita”, porque não vai além do puro devaneio.
No entanto, queremos nos concentrar é na discussão do mérito principal do livro, que admitimos e valorizamos: sua crítica à democracia. Os argumentos de Hoppe quanto ao crescimento médio da máquina burocrática com o alastramento das democracias parecem realmente irrespondíveis. Ele constata uma realidade. De fato, pela pura lógica, o simples incremento da possibilidade de participação no processo para mais pessoas já aumenta demandas e oferta de cargos, a simples necessidade de representá-las por parlamentares também o faz, e com isso o Estado se torna maior. Isso efetivamente traz, em seu bojo, uma série de problemas e dificuldades inéditas.
Por essa razão, Hoppe está certo ao dizer que a democracia, pelo menos aos olhos dos “democratistas” fanáticos e ingênuos, é um “Deus que falhou”, porque, na realidade, ela não é deus nenhum. Entretanto, a verdade é que não apenas Hoppe não é o único a fazer apreciações mais críticas à democracia (Hayek, a quem ele não é muito simpático, também o faz), como também os melhores democratas nunca a enxergaram assim. Winston Churchill, a quem ninguém negará os serviços na proteção das liberdades ocidentais, disse que ela é o pior de todos os sistemas, salvo todos os demais existentes. Nada muito entusiasmado, não é mesmo? Já Carlos Lacerda pontuaria que a democracia pressupõe a consciência da “relatividade das soluções”, do que decorre que não é e nunca foi nenhuma panaceia.
Sim, a democracia é um regime imperfeito que aumenta o Estado. Como tal, é justo e digno que seja criticada, e não vimos crítica mais interessante e sofisticada que a de Hoppe. No entanto, o maior mérito na defesa do sistema representativo e da democracia é justamente o reconhecimento das próprias limitações e a certeza de que se trata de um arranjo político em que as decisões podem ser revertidas. Sim, o Estado pode aumentar; e pode diminuir também. Se diminuir, poderá aumentar depois de novo? Também. Eis porque “o preço da liberdade é a eterna vigilância”. No mundo dos mortais, é tudo o que podemos almejar – e nada além.
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