Em Esquerda Caviar, lançado há cinco anos, dediquei um capítulo ao esforço de obliteração de conceitos por parte da esquerda, e citei o caso particular do termo liberal, que foi usurpado pelos “progressistas” nos Estados Unidos. Já era visível um mesmo esforço por parte da esquerda brasileira, depois que o esquerdismo ficou chamuscado com a passagem terrível do PT pelo poder.
Desde então, a tática ficou cada vez mais escancarada, e vários colunistas e jornalistas fazem de tudo para associar o liberalismo ao “progressismo” de esquerda. Formadores de opinião como Helio Schwartsman, da Folha de SP, que são simpáticos até ao petismo, consideram-se liberais, contra “reacionários obscurantistas” que para eles são todos os liberais com viés mais conservador.
Neste domingo, vimos o mesmo objetivo em uma reportagem do GLOBO sobre o Livres, com destaque para Elena Landau, que era tucana até ontem, e Fábio Ostermann, do Partido Novo, que seriam os “verdadeiros liberais” incomodados com Bolsonaro. Um liberal indiferente entre PT e Bolsonaro com Paulo Guedes? Sei… Diz trecho da matéria:
Eles são favoráveis à reforma da Previdência, mas também a favor da legalização das drogas. Concordam com Paulo Guedes, mas discordam de Magno Malta. Quando Jair Bolsonaro entrou no PSL, eles saíram. São liberais, mas não votaram no capitão da reserva — alguns, inclusive, optaram pelo candidato do PT, Fernando Haddad.
No limbo da polarização política brasileira, movimentos liberais, como o Livres e o Instituto Mercado Popular, tentam se equilibrar entre o apoio a medidas pró-mercado de Bolsonaro, como na Previdência, e a oposição a pautas conservadoras nos costumes.
[…]
Presidente do grupo à época da cisão, Paulo Gontijo diz que os liberais terão o desafio de não ser oposição por ser e não cair no canto da sereia do governismo.
— Não é um combo: liberdade econômica mais conservadorismo. Direitos humanos não é pauta de esquerda. Livre mercado não é pauta conservadora. Nós precisamos trazer o equilíbrio — diz Gontijo.
Cofundador do Instituto Mercado Popular, um laboratório de políticas públicas liberais, Pedro Menezes declarou voto em Haddad.
Não nego que o liberalismo tenha alguma flexibilidade, e tenho um curso online sobre sua trajetória. É possível ser um liberal mais “progressista”, ou um liberal mais conservador. O problema é que temos visto esquerdistas mesmo tentando usurpar o termo liberal para si. São pessoas que estariam confortavelmente no PSOL, se ao menos o partido de Freixo defendesse uma ou outra privatização.
Um socialista que gosta de iPhone! Claro que tem alguns efetivamente libertários ali, mas são libertários que dão muito mais ênfase ao aspecto libertino dos costumes do que ao arcabouço cultural que realmente permitiu o florescimento do liberalismo e garante as liberdades individuais. Explico melhor isso no meu novo livro Confissões de um ex-libertário, cujo subtítulo é justamente “salvando o liberalismo dos liberais modernos”.
Sério: como pode alguém que se diz liberal ficar indiferente entre Bolsonaro e PT? Pior: como pode alguém preferir o PT e ainda bancar o liberal?! Eduardo Giannetti, de quem já li todos os livros e acompanhei a trajetória do liberalismo ao “progressismo” marineiro, deu uma entrevista em que alerta para o perigo da reputação do liberalismo com o governo Bolsonaro. Eis um trecho:
Algumas propostas do PT ameaçavam também. Por exemplo, a liberdade de imprensa e de expressão e mesmo a autonomia dos poderes. Agora, a ameaça é maior com Bolsonaro. O Brasil vai viver duas coisas. Primeiro, um teste das nossas instituições democráticas. Será que elas sobrevivem ao voluntarismo e a tudo que Bolsonaro manifestou no passado? É uma dúvida. O segundo ponto é uma aventura para nossa sociedade em uma agenda ultraconservadora no plano dos costumes, que ameaça direito de minorias, e que, se se materializar, vai ser um tremendo retrocesso do ponto de vista da convivência no Brasil. Há uma outra aventura na agenda neoliberal radical que a equipe econômica está propondo. Uma agenda com muito pouca sensibilidade para questões ligadas à equidade, a grupos sociais vulneráveis e que me fez lembrar uma histórida da Revolução Russa. (À época), Max Weber era professor de Georg Luckács, o principal filósofo marxista do século 20. Weber disse para ele: “Temo que os russos arruínem a reputação do marxismo por um século.” Eu temo que essa aventura neoliberal radical, se não tiver o mínimo de sensibilidade social e de compromisso com a ideia de justiça, arruine a reputação do liberalismo no Brasil por muito tempo.
Essa gente quer atacar o “ultraliberalismo” de Paulo Guedes ao lado de Marina Silva e ainda monopolizar a defesa do liberalismo? Eduardo é pai de Joel Pinheiro, outro que fala em nome do liberalismo enquanto defende cada vez mais o esquerdismo. Guilherme Fiuza foi direto ao ponto:
Essa turma realmente vive na bolha “progressista”, mimada, apoiando um petista como Haddad com cara de monge iluminado. E fica por isso mesmo, pois ninguém do establishment confronta, aponta para a incoerência de defender o liberalismo ao lado dos mais antiliberais de todos, os socialistas. É uma piada! E nada melhor do que passar a “caneta desesquerdizadora” neles:
Agora esse silêncio conivente mudou: as contradições não ficam mais impunes, não passam despercebidas. Há reação. Os liberais clássicos, aqueles que respeitam Edmund Burke e tantos outros que temiam o tom revolucionário de certos “liberais” jacobinos, não vão permitir que a esquerda brasileira faça como a americana e tome para si, na marra, o termo liberalismo. Não sem luta!
Rodrigo Constantino
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