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Dia da ressaca: quarta-feira de cinzas é encontro com dura realidade
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O carnaval é a festa da transgressão, da licenciosidade, da libertinagem, da inversão de papéis, da troça, do esculacho e do escracho. Tudo válido, uma longa tradição que vem apaziguar o povo, permiti-lo desfrutar de uma fuga da realidade, ainda que temporária, onde “vale tudo” e as regras da civilização mais ordenada se desfazem no ar contaminado pela purpurina e confetes. O que me incomoda no Brasil não são os cinco dias de euforia artificial, mas os outros 360 dias de ilusões, passividade e povo ludibriado pelos mascarados no poder.

A campanha de Dilma para a reeleição foi um grande carnaval. Uma festa de mentiras, em que uma atriz (péssima), seguindo o script escrito por seu marqueteiro (brilhante, mas maquiavélico), vendeu um pacote de fantasias que seus eleitores bovinamente aceitaram. Que Brasil era aquele? Um muito diferente do real, sem dúvida. O estelionato eleitoral foi evidente, e fica difícil alegar desconhecimento e inocência, pois qualquer pessoa minimamente esclarecida tinha a obrigação de detectar as falácias.

Pois bem: poucos dias após a vitória nas urnas eletrônicas veio o encontro com a dura realidade. Foi a quarta-feira de cinzas do Brasil, que se prolonga até hoje, e ainda vai durar muito, muito tempo, provavelmente agravando bem ainda o quadro de ressaca. Esse é o problema da euforia irresponsável e artificial: o dia seguinte! Não dá para fugir dele, não é possível fingir que ele não existe, que é possível permanecer no encanto da folia para sempre. O povo brasileiro é mestre em esquecer isso.

Repito: o que incomoda não é o curto período de desordem, mas o longo período de falta de ordem onde esta deveria estar presente. Que o brasileiro mergulhe no samba e na bebida por poucos dias para afugentar tantos problemas de sua mente para ter algum refresco, isso é compreensível, claro. Mas que ele volte na quarta-feira de cinzas, depare-se com a medonha realidade, e finja que não é com ele, que está tudo bem, isso é inaceitável. Ou seja: o problema é encarar o resto do ano como se fosse carnaval!

O folião que for abastecer seu carro hoje vai se assustar com a gasolina cada vez mais cara, mesmo quando o preço do petróleo desaba no resto do mundo. Se abrir o jornal, vai se espantar também com notícias como esta, mostrando o que vem por aí para prejudicar ainda mais nossa indústria, que já está em crise pelas medidas atrapalhadas do governo Dilma. Isso para falar apenas da ponta do iceberg na economia.

Temos ainda o escândalo político, a Operação Lava-Jato que expôs o “petrolão”, e que gente poderosa de dentro do governo vem tentando abafar. Será que o brasileiro terá a mesma energia e disposição para sair às ruas no dia 15 de março e pressionar pela continuidade das investigações isentas e independentes, que poderiam eventualmente levar até mesmo ao impeachment de Dilma, se ficar comprovado o uso de dinheiro ilícito em sua campanha mentirosa?

O que cansa no Brasil não é o clima de festa, mas o eterno clima de festa, ou seja, tudo ser tratado como se fosse brincadeira. Colocar a máscara de Graça Foster ou do Cerveró pode ser engraçadinho, pode ser uma forma descontraída de protestar, mas não adianta absolutamente nada. Há que ter pressão real, povo nas ruas, eleitores e cidadãos atentos aos seus direitos e cobrando o império das leis.

Roberto DaMatta, antropólogo e autor de Carnavais, malandros e heróis, escreveu em sua coluna de hoje no GLOBO que o sentido do carnaval está se perdendo no Brasil, justamente porque a bagunça tomou conta do ano inteiro, não da curta festa carnavalesca. Diz ele:

Se o centro do carnaval era celebrar abertamente a malandragem e a esbórnia do igualitário, relativizando o luxo dos aristocratas e o poder de impunidade dos poderosos, teria isso algum valor festivo no Brasil de hoje?

Atualmente, falou o velho brasilianista um tanto serio, ocorre um escândalo carnavalesco todos os dias. O governo, mascarado, mente carnavalescamente. Acabou-se o riso alegre dos papéis invertidos. Hoje, o guardião dos recursos públicos é o primeiro a roubá-los. O dinheiro do povo é posto aos bilhões em bancos estrangeiros. Virou uma rotina a afinidade predatória do Estado para com a sociedade. Se não há mais ordem, como — pergunto eu — viver uma festa da desordem? O carnaval tornou-se banal, medíocre, trivial e diário.

Se o escândalo público e a ausência de punição são triviais, se os criminosos tornam-se heróis e, no máximo, transformam-se em máscaras carnavalescas, eu questiono: ainda há carnaval?

Creio que a resposta seja sim, ainda há carnaval. Infelizmente, ele não se limita aos poucos dias que antecedem essa quarta-feira de cinzas, o dia da ressaca; ele está presente é no ano inteiro. E é aí que mora o problema…

PS: Nem vou entrar no mérito aqui do que se transformou nosso carnaval, celebrando cada vez coisas mais abjetas, como regimes ditatoriais africanos em troca de milhões de dólares de doações. Insisto que problema muito maior é a postura do povo no restante do ano, pois no carnaval até há a desculpa de que tudo se justifica pela festa e deve ser encarado com leveza e benevolência, mas nada justifica a passividade de um povo roubado diariamente por uma quadrilha no poder.

Rodrigo Constantino

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