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Do massacre em Manaus para a direita radical: as vítimas eram sujeitos de direito e não objetos
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Por Sergio Renato de Mello, publicado pelo Instituto Liberal

O presente artigo trata de dar mais um recado àquela direita radical, mas vai além disso para informar que nesse massacre ocorrido em Manaus direitos foram violados e, agora, merecem ser reparados, mesmo que tudo termine, como sempre, em forma de alento indenizatório aos familiares.

O massacre ocorrido no interior do estabelecimento prisional em Manaus, decorrente de uma noticiada rebelião interna, com a morte de mais de 60 detentos, fez reacender as vozes ideológicas que se contradizem entre si e as luzes para o exame do repensar filosófico sobre a finalidade da pena criminal. Defensores mais da ala direitista manifestaram seu repúdio, não aos detentos ou pessoas que praticaram tal massacre, mas sim aos próprios detentos que foram vítimas da chacina, como se isso fosse um favor feito em benefício da sociedade. Chegaram a manifestar que tal prática deveria se repetir em outros estabelecimentos prisionais espalhados pelo Brasil. A bem de uma verdade mesmo, longe de se afigurar um exercício autêntico de uma liberdade de expressão, permitida, tais manifestações não passam de um abuso de direito de se expressar e reflexo inescondido de um imaginário totalitário. E, o que é pior, de um imaginário totalitário que se reverte em prejuízo da própria direita.

Ao mesmo tempo em que meu lado mais maldoso e vingativo entende essas manifestações de certos segmentos de uma direita mais radical, que propõem o ódio e a eliminação irrefletida dos bandidos ou criminosos, meu lado mais humano e sensato, proveniente de uma veia verdadeiramente cristã de ser, acerta-me com uma flecha direta o coração, põe-me um freio mais do que moral nesse entusiasmo de querer chacinar mais e mais os inimigos do bem e me dá a certeza de que eles são pessoas como eu. Ou seja, merecedoras de uma segunda chance, até porque a lei de execução penal diz isso. Além disso, e o que é mais importante, essa corrente que pulsa em meu sangue me dá um salvo conduto para poder escrever sobre esse escape na certeza e sem qualquer peso na consciência. Como sempre se cai naquela vala comum mais do que manjada, porém ainda sempre esquecida e merecedora de lembrete: a vida vale mais do que qualquer outro bem.

Desde já adianto que não sou adepto da culpa do Estado ou da sociedade na questão da criminalidade em si, como se todo e qualquer sujeito que praticou o delito devesse ser inocentado porque é vítima e não um agressor. Logicamente que não quero mascarar a realidade, dizendo que a família, a sociedade e o Estado, cada qual, não têm a sua parcela de culpa (a família, quando não apoia, a sociedade, quando recrimina, e o Estado quando não se estrutura suficientemente). Mas, ainda assim, aquele que cometeu o delito ainda mantém vivo o seu espírito e é por meio dele que se espera que mude o seu modo de pensar. O sujeito que cometeu o delito e desde que tenha ultrapassada a fase da comprovação da sua culpa e com trânsito em julgado, ou seja, um processo judicial com sentença definitiva de culpa, o seu destino legal é o cumprimento da pena criminal. É, como se diz, “atrás das grades” que ele deve ficar, ou em outros regimes menos severos, dependendo do regime de cumprimento de pena no qual ele tenha incidido. A culpa é do sujeito. Ele cometeu o crime tem que pagar e ponto. Desde que não haja doença mental que provoque a inimputabilidade penal, aqueles que estavam lá cumprindo suas penas e que acabaram sendo brutalmente assassinados, se em suas mentes havia ou não a intenção de se ressocializar, ainda mantinham o espírito vivo, mesmo que corrompido pela vitimização, a ponto de poderem dizer o que era certo e o que era errado em nosso estado de vivência social. Por outro lado, há regimes constitucionais que estabelecem a pena de morte. Não é o caso do Brasil, do que se conclui que a banalização da vida não pode servir como subterfúgio para uma pretensa e ainda não declarada tentativa de institucionalização da pena de morte. No entanto, lado outro ainda, o Estado tem culpa é em outra fase: no cumprimento da pena.

Não quero estabelecer culpados para tudo e eximir de responsabilidade penal aqueles que são, de fato, responsáveis do seus delitos, numa era de vitimização exacerbada e de mimos ou de ressentimentos. Todavia, existem leis e com direitos que devem ser cumpridos em prol de sujeitos de direitos.

Trabalho na execução penal e vejo que existem defeitos de todos os lados nesse sistema punitivo (o punitivo aqui está sendo citado sem juízo de valor e sem uma feição foucaultiana de ver as coisas). O apenado tem que cumprir a sua pena e raramente a vê como um resgate mesmo. Ou seja, ele não coopera para se ressocializar de vez, apronta dentro da cela ou do estabelecimento prisional, sendo rebelde quando deveria ser disciplinado (é o que está na Lei de Execução Penal) e, fora dele, não raro volta como reincidente. O pior de tudo é que alguns detentos, senão a maioria deles, enxergam que têm razão no que cometeram, ou seja, mesmo depois de condenados eles ainda continuam justificando os seus atos (fruto da vitimização!!). Os agentes prisionais que cuidam dos presos e da ordem interna são pessoas como nós, seres humanos, sem qualquer outro atributo pessoal que faça valer e feição de vocacionados. Estão ali para a ordem interna e punir os detentos quando há notícia de descumprimento de condutas que devem ser obedecidas. O problema é como isso é feito lá dentro. Há um pacto de conduta entre os agentes que não raro resulta em punição coletiva ou sem processo administrativo. Ou seja, não se consegue saber quem foi que fez um desenho no interior da cela por exemplo (ato que é considerado falta disciplinar), aí todos são considerados culpados e, para agravar, quase sempre sem um processo administrativo dentro do estabelecimento prisional para apurar os fatos (devido processo legal).

O maior culpado desse atual estado de coisas que o STF já declarou inconstitucional na ADPF n. 25.119 é o Estado. Essa figura que não faz nada além de captar mais e mais dinheiro de todo mundo ainda não dá a mínima para a construção de presídios ou estabelecimentos prisionais adequados para que esses detentos voltem para a sociedade sem um menor risco de cometer novos delitos. Assim agindo, o Estado acaba não pensando mesmo é no chamado cidadão de bem.

Como sempre, o Poder Executivo deixa de dar a devida atenção para a implementação de estabelecimentos prisionais adequados à finalidade da pena criminal. E isso por uma razão bastante fácil de se saber: construir presídios não dá votos, pelo contrário, tira-os. Existe a previsão legal, na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 1984), mas ela simplesmente não é cumprida. Daí, em grande parte, o motivo das rebeliões e dos motins entre presos, com reclamações de direitos que muitas das vezes existem e não lhes são dados. Tem gente que já terminou o cumprimento da pena e não consegue sair do estabelecimento por falta de pessoal para resgatar o seu processo e fazer a soma. Ou seja, levar o caso ao juiz para que ele dê a sua decisão e expeça a soltura.

Como deixou assentado em certa oportunidade o STF: “Há, efetivamente, no Brasil, um claro e indisfarçável “estado de coisas inconstitucional” resultante da omissão do Poder Público em implementar medidas eficazes de ordem estrutural que neutralizem a situação de absurda patologia constitucional gerada, incompreensivelmente, pela inércia do Estado que descumpre a Constituição Federal, que ofende a Lei de Execução Penal e que fere o sentimento de decência dos cidadãos desta República, tal como se proclamou no julgamento plenário da ADPF 347-MC/DF, Rel. Min. MARCO AURÉLIO: “(…) SISTEMA PENITENCIÁRIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caraterizado como ‘estado de coisas inconstitucional’.” (grifei).

Há um problema nessas manifestações de direita que se tornam fascistas ao propagarem o ódio e até mesmo o mesmo modus operandi mortal em todos os presídios brasileiros, como se a morte resolvesse alguma coisa, diminuísse o número de criminosos, acabasse com a criminalidade ou a diminuísse. Esse discurso de ódio vindo da ala direitista da sociedade, que prega valores mais conservadores, inclusive o do não-ódio, o respeito à vida em todas as suas manifestações (aí incluindo qualquer vítima, seja pessoa dita de bem ou aquele que estão cumprindo pena criminal), o respeito às leis e ao Estado de Direito, acaba subvertendo toda a lógica cultural e política que o próprio movimento liberal, conservador e de direita tem como seu fundamento, que é na base daqueles mesmos valores e interesses sempre buscados em sociedade. Não se deve esquecer que quem sempre prega o direito de matar em defesa de sua ideologia romântica e utópica são movimentos políticos de esquerda (e nem preciso nem mencionar o número de mortes do passado histórico do lado mais negro e sombrio de todo o comunismo mundial). Assim agindo os braços direitistas ou pseudo direitistas em face desses acontecimentos trágicos no mundo e no Brasil, de demonstração de grave violação do direito à vida, teremos nada mais nada menos do que braços da esquerda camuflados ou enrustidos fazendo um papel contrário ao que se pretende. E os avanços contracomunistas em terras brasileiras vão pouco a pouco, se houver repetição disso, perdendo o pequeno espaço conseguido desde a primeira metade do século XX para cá, em combate à doutrina/cosmovisão Gramsciana de ver a vida, ou seja, de uma forma deturpada ou desvalorizada. E deixar que os espaços democráticos sejam violentamente desrespeitados ou banidos, não permitindo que as todas as vozes sejam ouvidas, como ocorre no Brasil, a exemplo do campo midiático, estelionatário por excelência, e do político, seria o mesmo que deixar avançar a ruptura da democracia em um regime brasileiro que é, formal e essencialmente, democrático.

A finalidade da pena criminal no Brasil tem seus vieses punitivo e ressocializador. O cidadão que cometeu o delito tem que ser punido ao mesmo tempo em que deve ser ressocializado. Ou seja, não se descarta o caráter pedagógico da pena e não se descuida do intento reabilitacional da reprimenda. Longe da questão de se saber se a pena no Brasil reeduca ou não (para mim ela somente reeduca se o detento quiser ser reeducado, e na maioria das vezes ele, de fato, não quer), essas são as finalidades previstas na Constituição Federal e nas leis, principalmente na Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210, de 1984). O grande problema é que o sistema carcerário brasileiro, em sua estrutura, não atende à demanda de pessoas que precisam de estabelecimentos adequados para o resgate com dignidade de uma pena criminal. Esse é um dos grandes problemas, senão o maior deles. Não estou dizendo que a culpa é do Estado ou da sociedade, retirando-a do apenado, mas que o Poder Executivo não liga a mínima para as condições em que os presos estão nos estabelecimentos prisionais, na sua grande maioria com aspectos medievais, insalubres e mortíferos, indignos para a condição humana de quem está ali para nele permanecer, quem sabe, por vários anos. O apenado merece estar encarcerado? Sim. Mas em condições dignas de sobrevivência e de cumprimento de pena, uma patamar ideal e legal que o faça voltar ao convívio social sendo uma nova pessoa, sem pensar em voltar para o sistema como reincidente.

Mencionei exatamente a palavra cidadão no parágrafo anterior para deixar clara a natureza da relação que ainda se mantém entre ele e o Estado, bem como entre ele e as demais pessoas conviventes ou não no seu meio ou fora dele. Em outras palavras, a pessoa que cometeu o delito ainda deve ser considerada um sujeito de direitos como qualquer outro inocente, capaz de exigir e de cumprir leis. Mesmo que ele tenha o seu título de eleitor digamos confiscado, porque perde o direito de votar e de ser votado, o direito ainda lhe garante o seu espaço nas leis, ainda que reduzido em face de sua condição de preso. Ou seja, pode ele exercer os direitos que não são incompatíveis com a execução da penal (Art. 15, III, da Constituição Federal e art. 3º, caput, Lei de Execução Penal).

É de perceber-se que há certa confusão na leitura dos direitos humanos, como se a defesa de tais direitos, vindos principalmente de acordos internacionais e da própria ONU, assim como são expressamente previstos em nossa Constituição Federal, nunca pudesse ser feita por defensores e intelectuais de direita, mas somente de esquerda. Absolutamente não! Direitos humanos têm que ser defendidos não importa por quem e sem importar a ideologia ou partido. Violação de direitos humanos não pode ser aceita por policiais, na esteira de um politicamente correto com o mantra bandido bom é bandido morto, e nem mesmo por detentos que se acham cumprindo pena, muito menos ainda por ideólogos, partidários ou intelectuais que se acham fora do sistema carcerário. Lembrando, o direito à vida está acima de qualquer fundamento filosófico, mesmo que sistemas de pensar antigos intentavam colocar em prática as suas ideologias assassinas matando gente, muita gente. E não é isso que se quer para a direita, que apregoa acima de tudo direitos individuais.

Culturalmente, observar-se certa degradação de valores que sempre se quer preservados, como a vida humana e não o seu tratamento banalizado através de imagens de corpos sendo decapitados. As fotos e os vídeos que viralizaram na internet são prova viva de que algo se perdeu ou está se perdendo em meio a essas barbáries que tiraram vidas: a dignidade da pessoa humana. As imagens de corpos já decapitados ou os vídeos com os detentos serrando-os ou cortando-os é mais do que evidente que o perfil humano de ser está em decadência. Para virar notícia hoje em dia tudo se mostra sem se importar o quão vil isso seja, sem se importar nas consequências de tal prática frívola. A mídia mais mesquinha e já alheia a esse tipo de preservação humana só contribui para esse atual estado de coisas banalizadas. É a cultura do ocidente, com o cristianismo de quebra, já em franca degradação moral, intelectual e cultural.

Sobre a frivolidade do mal e seus comparsas jornalistas e intelectuais que se locupletam à custa do sofrimento alheio, com bastante propriedade Theodore Dalrymple, ao dizer: “(…) a elevação do prazer efêmero que se sobrepõe à miséria de longo prazo (…) E que melhor resposta descreveria a atitude daqueles intelectuais que não veem nada de mais nessa conduta a não ser a extensão da liberdade e das escolhas humanas (…). Fundamentalmente, a covardia moral das elites intelectuais e políticas é responsável pelo permanente desastre social que se tomou conta da Grã-Bretanha (…) Melhor que milhões vivam desgraçadamente e na imundície do que as elites se sentirem mal sobre si mesmas – outro aspecto da frivolidade do mal.” (Nossa cultura… ou o que restou dela: 26 ensaios sobre a degradação dos valores. Tradução Maurício G. Rigui. 1ª ed. São Paulo: É realizações, 2015, p. 35 e 39).

Todo homem, pelo simples fato de pertencer à espécie humana, tem direito à vida. Assim diz a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 3º), o Pacto de San José da Costa Rica (art. 4º) e a Constituição Federal (art. 5º, caput).

Resta aos familiares a postulação indenizatória contra o Estado.

Os detentos de Manaus nos deixaram um recado: o de repensar progresso, ideologias, nossos mimos e ressentimentos, bem como nossa covardia diante de nossa fragilidade e insustentabilidade, de nossa finitude perante Deus, nossas incertezas, tudo isso em decorrência de um caos intelectual em que estamos vivendo, sempre à procura de respostas nunca encontradas, como se elas de fato existissem ou algum dia possam vir a existir. Os detentos conseguiram contornar tudo isso e, em cima de 60 outros seres humanos também vivos, deram um show à parte em nossa vã filosofia ou filosófica politicamente correta, provando que o homem é homem e nunca deixará de sê-lo. Os detentos que provocaram a chacina provaram mais algo sobre bondade natural, infirmando-a, que talvez em algumas cabecinhas ocas com alguma dúvida. Ao cortar aquelas cabeças foi como se os referidos detentos dissessem: eis uma prova da queda e do pecado original. Principalmente quem está de fora desses muros fechados atente-se para o verdadeiro risco de hoje, qual seja, o de olhar sempre para a humanidade e seus dilemas e esquecer o ser humano. Acerca disso, como nos deixou G. K. Chesterton, em sua lição sobre O homem eterno: “A verdade mais simples sobre o homem é que ele é um ser muito estranho; quase que no sentido de ser um estrangeiro na terra. Com toda a sobriedade, pode-se dizer que ele tem bem mais aparência externa de alguém a trazer hábitos estrangeiros de outra terra do que da aparência de mero desenvolvimento desta terra (…) ele não pode confiar em seus próprios instintos (…). A sua mente tem as mesmas liberdades duvidosas e as mesmas limitações selvagens (…) Único entre todos os animais, ele sente a necessidade de desviar os seus pensamentos das realidades básicas de sua existência corporal; de escondê-los, como se na presença de alguma possibilidade mais alta que cria o mistério da vergonha.”.

Sobre o autor: Mateus Menezes do Nascimento é Graduado em História pela Universidade de Franca, Especialista pelo Centro Universitário “Barão de Mauá” e Bacharelando em Direito pela mesma instituição de ensino superior. Suas pesquisas se concentram na área de Gestão Pública, instituições políticas brasileiras, concepções econômicas da Escola Austríaca, pensamento conservador, liberal e mentalidade revolucionária.

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