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Roger Scruton é um dos mais importantes filósofos da atualidade, e sem dúvida um dos mais respeitados conservadores vivos. Além de filósofo que escreve sobre beleza e vinho, entre outras coisas, ele é autor de óperas e ainda escreve romances. Notes from Underground é seu mais novo livro, que acabo de devorar.

O título, naturalmente, remete ao clássico de Dostoievski, que li há quase uma década. Posso estar enganado, portanto, mas a diferença é que o narrador do escritor russo é mais agressivo em seu desespero e desencanto, apesar de ambos serem igualmente angustiados com a vida sem sentido no “subterrâneo”.

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O personagem principal de Scruton, Jan Reichl, vive em Praga na década de 1980, sob o regime comunista. Criou um mundo à parte de fantasia no metrô, lendo e observando outras pessoas, inventando histórias sobre elas para suportar a vida asfixiada pelo coletivismo e a censura. Até conhecer uma mulher…

Apaixona-se por Betka, uma personagem extremamente complexa, que o introduz em um mundo completamente novo, acima do subsolo, mais verdadeiro, com dissidentes, com música clássica, artes, beleza, tradição, amor. É uma história de amor proibido em um mundo insano, ditatorial, perverso, cínico.

No percurso, Reichl acaba levando sua mãe à prisão, pois para ir atrás de Betka ele se deixa colocar em uma situação de perigo, uma vez que é autor de um panfleto subversivo produzido e impresso pela própria mãe. As autoridades chegam até ela, que acaba sendo presa. O dilema e a culpa o acompanham o tempo todo, pela descoberta de todo esse novo mundo mais encantador e real, cujo preço fora o encarceramento da mãe.

Outro personagem interessante é o Padre Pavel, mecânico durante o dia, mas que resiste ao regime com o ato corajoso e subversivo de manter a pregação cristã em uma igreja abandonada. Sua postura sempre branda, paciente e benigna me fez lembrar do Padre Brown, personagem dos excelentes contos de Chesterton.

Reichl não era religioso, tinha uma visão cética do mundo, e Padre Pavel lhe apresenta uma nova dimensão ou ponto de vista, alegando que Deus está justamente nesta ausência. A religião não seria uma escapatória do sofrimento, e sim uma forma de aceitá-lo. São diálogos bastante profundos travados por ambos no decorrer do livro.

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Viver acima do subsolo em um regime comunista, onde a mentira se torna a regra oficial, acaba transformando todos em cínicos. O romance de Scruton é a luta de um indivíduo simples em sua ambição de conhecer, experimentar, viver de verdade. E o filósofo cria essa narrativa com muita sensibilidade e sofisticação, nos levando junto em sua caminhada por tantas novas descobertas feitas por este jovem.

Para Scruton, a filosofia não deve ser dissociada da vida prática, não pode ser uma fuga para abstrações sem qualquer elo com pessoas de carne e osso – algo que o próprio comunismo representa. Não devemos tentar criar um “mundo novo” do zero, e sim entender o mundo real, buscar a melhor forma possível de entrar em sintonia com ele. As tradições, as artes, as religiões seriam receitas oferecidas pelo filósofo conservador.

Passar essa mensagem filosófica por meio de seus personagens em um romance é justamente o grande mérito da obra, pois tira as ideias das abstrações puras e dá vida e nome a elas. Scruton até introduz na história um típico filósofo progressista do Ocidente com essa inclinação ao abstrato, falando um monte de coisas e pregando vários conceitos que não encontravam respaldo algum no cotidiano daqueles dissidentes em Praga. Uma mulher americana impedida de fazer um aborto seria tão vítima da opressão quanto um checo sob o comunismo. Viva Foucault!

Mas o narrador, que nos conta sua história do presente como reminiscências daquela vida intensa de duas décadas atrás, hoje vivendo em um subúrbio de Washington, não tem apenas elogios ao que veio com a queda do regime. Claro, a liberdade é fundamental, ele sabe disso. Mas olha com nostalgia para aquelas memórias, e para o sentido que a dissidência dava para suas vidas. Sente que “algo” se perdeu. E retrata com certo desdém o que fizeram com a liberdade conquistada:

Os escravos foram libertados, e se transformaram em idiotas. A música pop soando em cada bar, enchendo os cantos onde, não há muito tempo, nós sussurrávamos sobre Kafka e Rilke, sobre Mahler e Schoenberg, sobre Musil e Roth e “O Mundo de Ontem” que Stefan Zweig lamentava de forma tão comovente.

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Nosso herói, ou anti-herói, buscou refúgio na solidão, aquela possível nas cidades americanas, “onde todos são amigáveis porque ninguém acredita muito fortemente na vida interior que se esconde atrás do brilhante exterior”. Essa busca interior, não resta dúvida, é sempre um ato solitário. Mas é ótimo poder contar com gente como Roger Scruton nos auxiliando nessa empreitada.

Rodrigo Constantino