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Doutor Estranho não chega a empolgar, mas suscita algumas reflexões interessantes

 

 

Sou da geração que leu as histórias dos super-heróis em quadrinhos. A geração anterior criou esses personagens, e a de agora pode vê-los ganhando vida de uma forma impressionante. Nem consigo imaginar como é ser uma criança e ver as cenas de “Os Vingadores”, ou ver o Homem de Ferro realmente voando daquele jeito. Deve ser uma experiência única, e por isso acho que o cinema moderno, com seus efeitos especiais, merece sim ser chamado de arte (mais do que essas “instalações” terríveis ou “performances” ainda piores por aí).

Eu era fã do Wolverine e alguns outros na minha adolescência, mas confesso que nem conhecia o tal Doutor Estranho. Não perdi muita coisa. O herói mais “metafísico” tem até aspectos interessantes, mas não se compara aos X-Men ou ao Capitão América, menos ainda ao Tony Stark com sua armadura que voa. Talvez o filme seja o culpado para os leigos como eu: a história vai rápida demais para amarrar os pontos, que ficam um tanto soltos. Do cirurgião brilhante e arrogante ao mestre das magias num piscar de olhos: não dá nem para o espectador se sentir parte dessa mudança a jato.

Fora isso, confesso que as cenas de luta cansaram um pouco, deram até tontura, pelos excessivos truques de transformação do cenário, que parecia vivo. Meio na linha daqueles diretores que gostam de dar um senso do real com filmagens trêmulas, que acompanham a corrida do personagem, mas deixam o público com dor de cabeça. Não é meu estilo, apenas isso. Velocidade demais pode atrapalhar.

Não obstante, há algumas coisas que suscitam boas reflexões filosóficas no filme. Em primeiro lugar, claro, a arrogância materialista do médico que “sabe tudo” e salva vidas, e que acaba aprendendo que não sabia quase nada e que precisa confiar menos em sua própria razão, por não ser absoluta e não dar conta da complexidade do mundo. Podemos usar a razão para reconhecer seus próprios limites: isso é racional, como já sabia Sócrates.

Em segundo lugar, a eterna discussão entre idealismo e pragmatismo, entre os que seguem cegamente seus princípios de forma intransigente e os que são mais flexíveis com a ética, na linha de que seus nobres fins justificam certos meios questionáveis. Ambos acabam sendo complementares na batalha contra o Mal maior, eis o recado. Saber quando flexibilizar um pouco seus princípios mais elevados para obter resultados concretos é importante, e também perigoso: uma vez rompida essa barreira, qual o limite? Até que ponto o bom que quebra as regras não se torna ele mesmo parte do mal que pretende combater?

Por fim, a eterna questão da eternidade! A busca da imortalidade acompanha o homem desde sempre. A morte assusta, o tempo é cruel, é o nosso maior inimigo, segundo o vilão do filme, que acaba seduzido pelas forças do Mal, pelo niilismo, pelo desejo de destruição do mundo em prol do conforto da eternidade – ainda que uma eternidade desprovida de vida. “Anseio ardentemente por aquela condição psíquica em que, livre de toda responsabilidade, sentirei a estupidez do mundo como um destino”, escreveu Karl Kraus.

Viver e pensar traz angústias, entre elas a consciência da própria finitude, as doenças, perdas, tristezas. Um médico cirurgião que perde a habilidade com as mãos num acidente, sendo que isso era “a” sua vida: como sobreviver? Como continuar apostando na vida? Por que não desistir, se entregar? Camus colocou o suicídio como a única questão filosófica relevante. Nesse “mito de Sísifo” a que somos submetidos, é um ato de fé seguir adiante.

E mesmo com todos os problemas, viver compensa, vale a pena. Salvar o que é humano em nós, inclusive a morte, é fundamental. Há mais razões para viver, é preciso encontrar sentido, propósito. E o Doutor Estranho o faz, apesar de tudo. Enquanto o vilão que ele combate preferiu desistir, destruir, se deixar seduzir pela ideia de imortalidade. Mas o que seria a imortalidade para os humanos? Um prêmio ou um fardo?

Seria um caos, seria estar preso em algo atemporal, enquanto é o tempo que dá sentido a tudo que valorizamos. Sim, é a morte que faz a vida ter valor! Na eternidade não há vida, pois não há morte. Já escrevi sobre isso aqui. No filme, com algum spoiler, o Doutor Estranho consegue sua vitória barganhando com as forças do Mal. Nem elas suportaram a prisão sem tempo, permanecerem eternamente no mesmo ato, sem surpresas, sem o desconhecido, o imprevisível.

Enfim, são essas as minhas impressões do novo filme de quase $200 milhões da Marvel. Não chegou a empolgar muito, mas levantou questões interessantes e os efeitos especiais impressionam, apesar de serem tão frenéticos a ponto de deixar tonto. Agora, depois de tentar filosofar em cima de um filme de super-herói, volto à leitura de Belgravia, de Jullian Fellowes, o criador de Downton Abbey. Um deleite mais refinado, sem dúvida. Bom fim de semana a todos.

Rodrigo Constantino

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