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E quando perdemos os legados do passado?
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Por Hiago Rebello, publicado pelo Instituto Liberal

Nosso mundo contemporâneo possui várias raízes. Podemos encontrar, inclusive, raízes no distante paleolítico que irão exercer forças e influências até o nosso tempo, contudo cada raiz terá tamanho e peso distinto – se olharmos para o mundo ocidental da atualidade, veremos um emaranhado imenso de influências medievais, e não é para menos: nossas línguas, países e nossa moral possuem sabores medievais incontestáveis. França, Inglaterra, Portugal, Dinamarca, Polônia, Hungria, Noruega, etc., todos têm suas formações no medievo, assim como os idiomas que falamos, apenas para exemplificar o peso do medievo; contudo, a despeito das raízes medievais serem fortes no Homem ocidental atual, as raízes da Antiguidade não podem ser ignoradas e tampouco sufocadas.

Profundas na terra, intricadas em nosso espírito, as contribuições e características de nosso passado grego e romano nos permeiam, mesmo sem que nós saibamos de suas existências. O mundo Ocidental não nasce em outra época que não a Antiga. A Grécia e suas maravilhas, que nos nutrem ao longo dos milênios e ecoam por todas as sociedades ocidentais que já existiram, existem ou existirão.

No entanto, o que ocorreria se cortássemos essas raízes antigas de nosso mundo? E se quiséssemos secá-las, distorcê-las, corroê-las até virarem uma “piada” digna de uma fantasia surreal?

De fato, tais danos às nossas origens já foram feitos. O abandono gradual de nossas procedências ocorre há séculos; porém, que precedências? Que raízes? Não nos esqueçamos de que os mesmos gregos que ergueram nossa civilização também são os que criaram a erística, o relativismo, o materialismo…

De fato, as raízes do Ocidente são gregas, mesmo as que nasceram apodrecidas. Mas aí que está: a fina diferenciação do melhor e do pior, a discriminação do bem e do mal, à luz da filosofia, também nasce na Grécia. Se existiram filosofias ruins, sofistas e tolos dentro do pensamento grego, também existiram aqueles que souberam separar o joio do trigo e, principalmente, souberam demonstrar racionalmente como essa separação pode ser feita – e são esses pensadores, os que legaram descobertas importantíssimas ao Homem, que são deixados de lado.

Em busca das conquistas do passado, na procura de referenciais cada vez mais deixados de lado pelo Homem moderno e pós-moderno, Giovanni Reale (1931-2014) dedicou sua obra O Saber dos Antigos: terapia para os tempos atuais, na década de 90 do século passado. Reale identifica os males do Homem atual baseado na obra geral de Friedrich Nietzsche, quando este observa a progressiva degradação do Homem, em seu tempo, quando as Verdades Supremas, Deus e a ética se veem questionadas pela civilização que, antes, se nutria desses Bens inquestionáveis.

Em um mundo pós-Revolução Francesa, em um mundo moldado, em grandiosa parte, pela Crise de Consciência que atravessou a Europa nos séculos XVII e XVIII, os valores soberanos acabam por ser questionados. Subjetivismo, idealismo, ideologismo, materialismo, racionalismo, etc., “nascem” na era Moderna e criam consistência e consequências para os tempos contemporâneos. Reale, usando a interpretação de Nietzsche, declara o verdadeiro mal contemporâneo: o niilismo.

Mas o que é o niilismo? É a total negação da existência de Nortes suprassensíveis, transcendentais, que guiam o Homem. É a negação do Bem, da Verdade, de Deus, do Transcendente. Todos os guias que levaram a humanidade até o “estágio” atual, na realidade não existem. O autor, utilizando a interpretação que Heidegger possui da obra de Nietzsche, demonstra que este nada, este vazio de propósito na existência, leva o Homem a matar Deus, a matar tudo o que é Transcendente, a destruir toda a tradição socrática até a Idade Contemporânea.

Em negação aos nortes metafísicos que guiavam os Homens, esta morte dos princípios e o esquecimento dos valores supremos têm como efeito a dissolução fundamental do Homem. A Verdade, afinal, acaba sendo relativizada em prol de um nada; o Bem se vê na inutilidade; os sentidos para a sociedade e para o indivíduo se perdem, escoando no nada e para o nada. Falsidade e Verdade já não são tão distinguíveis assim. É nessa falta de consistência com o real, vinda do niilismo, que outras matérias irão substituir o que a Religião e a Filosofia (descendente de Platão) outrora davam ao mundo. O cientificismo, o positivismo, comunismo, o liberalismo radical, o consumismo, o nacional-socialismo, etc., vêm ao mundo tentando dar significado a este.

Como os princípios religiosos e filosóficos foram deixados de lado, outros princípios deveriam ocupar seus lugares: o fim último seria um paraíso na Terra – este paraíso poderia ser representado pelo desenvolvimento técnico e científico, facilitando tudo no cotidiano humano, com uma racionalização máxima que daria a extrema eficiência de tudo no mundo; o paraíso terrestre viria de uma sociedade onde as classes seriam abolidas, e os meios de produção estariam totalmente socializados; o paraíso viria de uma sociedade livre, onde o avanço da economia liberal faria todos os problemas progressivamente serem supridos pelo mercado; o paraíso poderia ser representado pela pureza de raças e das nações, onde um Estado gigantesco poderia gerir todos os fins de seu povo e guinar o destino deste.

Mas tais momentos históricos não são o niilismo completo, embora sejam uma consequência deste. Um cientificista, por exemplo, não pode ser um niilista, pois ainda crê na existência da verdade, ainda que de modo manco.

Reale faz o seguinte apontamento: o niilismo onde certos valores sociais e científicos são erguidos, visando o futuro, não pode ser completo. Para existir em sua excelência, o niilismo necessita negar todos os valores, todas as verdades, todo o sentido – porém, ainda que sejam incompletos esses niilismos não deixam de causar efeitos danosos.

O autor, ao analisar as obras de George Orwell e Aldous Huxley, vê as consequências do niilismo: sem nenhum valor para além do mundo físico, para além do Homem e da sociedade, o poder político na ditadura da Oceania, em 1984, assiste-se a sede de poder do principal vilão da trama, O’Brien, afirmando: se o partido desejar que 2 + 2 sejam 5, será 5. A cena não é vinda de uma ficção pura: é a História do comunismo, história esta romantizada com perfeição por Orwell, onde todo o critério de Bem, Verdade e Valor são relativizados em prol do Partido, em prol da ideologia – o próprio ideologismo é a diminuição de tudo para o campo ideológico, de todas as posições, de todos os apontamentos, onde não existiriam discursos ou uma realidade para além da ideológica. Amor, Verdade? Necessitam de ministérios, para serem expostos na sua realidade. 1984 é o niilismo em prática.

Em O Admirável Mundo Novo, de Huxley, contudo, Reale insiste no caráter “feliz” e “pacífico” do mundo totalmente dominado pelo bem-estar, onde a ciência e a técnica dominam a todos, e a vida de cada indivíduo é gerida e programada como se a sociedade fosse um grande experimento controlável em um laboratório – mas, de novo, as distopias não se afastam da realidade. Como em Orwell, Huxley via os movimentos contemporâneos guiarem seus valores por uma espécie de nada ancorado no bem-estar e na ciência.

Sem os critérios suprassensíveis, sem um fim para nossas existências um alvo para nossas vidas, não há o que conduzir a política, a moral, nossas noções de mundo. Sem as conquistas metafísicas de Platão (onde os princípios estão para além de nosso mundo), sem o conhecer a si mesmo, sem a noção de Verdade e de Virtude socráticas, nos tornamos uma espécie de cego, sem ter com o que nos basear para ver o mundo adiante.

O próprio apelo para a não-violência fica sem sentido. Por que não agredir o outro? Se o nada é o que existe, se não existem Leis para além de nós mesmos, um sujeito vazio existencialmente, ou outro que ponha a sociedade, sua ideologia, sua felicidade, etc., acima das demais pessoas, não terá nenhum fundamento último para se firmar, estando a flutuar em um nada, sem nada Supremo, sem nenhum fim último e universal para se guiar.

O consumismo, a idolatria ao mercado, também segue a mesma premissa. E daí se construirmos bordéis, com prostitutas à mostra em vitrines, na frente de escolas? E daí se alguém usa sexo, lesbianismo, incesto e afim apenas para aumentar a audiência de seu programa com problemas de IBOPE? O que tem de mais legalizar todo o tipo de drogas? Qual o real problema de deixarmos mães que não querem ter mais gastos na vida matarem seus próprios filhos, enquanto estes estiverem em seus ventres? Se eu quero lucrar, comprar, poupar, se meu voluntarismo manda, eu devo obedecer.

Sem as conquistas da Antiguidade, sem o legado máximo que nos sustentou e sustenta, nem mesmo a Beleza pode existir. Os Antigos descobriram que a beleza é a Forma ordenada das coisas – Reale observa: o que se chama de Arte Moderna é, nada mais e nada menos, do que o disforme representado em algo. Não há contatos com o real, quando se recorre ao puro abstracionismo. Quando sua abstração pode transformar tudo em arte, tudo em beleza, então não existe a arte, não existe o belo. Não há espaço para o valor nesta diluição total.

O Saber dos Antigos não é uma obra muito conhecida no meio conservador brasileiro, e esta falta deve ser reprimida. Giovanni Reale demonstra como este vazio pode ser danoso e destruidor, para onde quer que se olhe: política, família, amor, vida, honestidade, conhecimento… tudo é sugado para uma espécie de vácuo cultural e substituído por horrores como o comunismo, nazismo e cientificismo – todos vindos de um pensamento antimetafísico, e, portanto, metonímicos, limitados para explicar a totalidade do Mundo, mas ainda assim empenhados em dar esta explicação, não importando o preço vermelho a se pagar.

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