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Em defesa do PNA. Ou: Liberdade envolve riscos
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Por João Luiz Mauad, publicado pelo Instituto Liberal

Meu colega Ricardo Bordin, com o brilhantismo habitual, escreveu ontem um longo artigo, em que procura demonstrar que a aplicação indiscriminada do princípio da não agressão (PNA) seria, em resumo, uma manifestação da “sanha individualista” de alguns liberais, e mostra-se “tão quimérica quanto seu primo distante, o socialismo”.

Segundo Bordin, “entre um comportamento que claramente agride a terceiros (…) e outro que, claramente, não nos diz respeito e sobre o qual não devemos possuir qualquer ingerência (…), resta sempre uma zona cinzenta, na qual generalizações abstratas não se prestam a inferir se houve ou não desrespeito ao princípio da não iniciação de agressão. Neste cenário, somente uma análise pormenorizada de cada caso concreto será capaz de comprovar se houve ou não prejuízos a outras pessoas porventura envolvidas não intencionalmente no campo de incidência dos agravos de determinado procedimento.” (Grifos meus)

Partindo dessas premissas, Bordin defende as bandeiras conservadoras da proibição das drogas (exceto o álcool), do “tráfico de órgãos” e o fechamento de fronteiras a estrangeiros, entre outras.

Antes de qualquer outro comentário, devo esclarecer que não considero o PNA um princípio absoluto.  Há casos claros em que conflitos de direitos estarão presentes e deveremos optar por aquele de maior valor.  Por exemplo, invadir uma propriedade para salvar uma vida é uma exceção válida do PNA, já que coloca em situações antagônicas o direito à vida e o direito de propriedade, sendo o direito à vida o principal, porque dele decorrem todos os outros.

Dito isso, passemos a analisar os argumentos de Bordin.  Antes de qualquer outro comentário, seria oportuno definir o termo agressão.  Segundo o Houaiss, agressão é: 1. Ataque  à  integridade  física  ou moral de  alguém; 2.  Ato de hostilidade, de provocação.  Destas definições depreende-se que uma agressão é um ato deliberado ou intencional praticado contra um terceiro.  Ou seja, para definirmos uma ação agressiva é necessário saber se há nela intenção de causar dano, além da presença de duas figuras distintas: agressor e agredido.

Essa definição é importante porque Bordin parece confundir um ato de agressão a qualquer ação que por ventura cause prejuízo a outras pessoas, mesmo que não intencionalmente.  Como ele próprio destaca corretamente, vivemos em sociedades altamente complexas, onde qualquer movimento individual pode trazer algum prejuízo a terceiros.  O simples fato de eu tirar o carro da garagem pela manhã para dirigir-me ao trabalho pode vir a causar prejuízo a alguém, por causa de um acidente de trânsito.  “Não agressão” é, portanto, muito diferente de “não prejudicar”.  A namorada que dá um fora no namorado apaixonado pode causar a este um profundo dano psicológico, cuja cura pode demandar anos, mas nem por isso alguém ousaria tentar proibir aquela decisão.  No mesmo diapasão, um profissional que envia seu currículo a uma empresa poderá causar a demissão de outro, com conseqüências profundas na vida deste.  Simplesmente, é do jogo.

Embora Bordin trate o álcool como uma droga amena, não causadora de problemas graves, a coisa não é bem assim.  Tenho alguns casos de alcoolismo na família e sei como esse vício pode causar sérios danos (emocionais e econômicos) às pessoas em volta.  Porém, mesmo sabendo disso tudo, jamais passou pela minha cabeça defender a proibição do consumo de álcool.

Bordin compara os defensores do PNA – que ele chama de utópicos do individualismo – aos socialistas, sem se dar conta de que os argumentos que ele utiliza para defender algumas bandeiras proibicionistas, notadamente aqueles que apontam para eventuais prejuízos não intencionais a terceiros, são muito próximos dos argumentos dos proibicionistas à esquerda.

Por exemplo: quando a esquerda defende a obrigação do uso de cinto de segurança, do capacete por motociclistas, a redução compulsória do consumo de refrigerantes açucarados, de comidas gordurosas, ou mesmo a imposição de tarifas protecionistas às importações, seu argumento é sempre o de que estas condutas geram conseqüências prejudiciais (indiretas) aos demais, seja pelo aumento dos gastos com saúde pública, seja pelo desemprego eventualmente causado aos trabalhadores de determinadas indústrias.  Mesmo quando pregam a proibição da venda ou do porte de armas, o argumento subjacente é sempre o risco de dano a terceiros que isso pode causar, ainda que involuntariamente.

Parece óbvio, portanto, que, se fôssemos utilizar o critério de risco de dano eventual, não intencional, para demarcarmos o que os indivíduos podem ou não fazer numa sociedade complexa como a nossa, não restaria muita coisa, e a liberdade estaria irremediavelmente comprometida.  Por isso, acredito que o “in dubio pro reo” mencionado por Bordin em seu artigo para justificar a proibição de certas condutas cujas conseqüências não podem ser previstas com precisão, variando de caso a caso, deveria, ao contrário, privilegiar sempre a liberdade, o verdadeiro réu aqui.

Ademais, a presença do fator risco em cada ação ou escolha que fazemos não pode – e não deve – significar paralisia. Assumir riscos razoáveis, tanto em relação à nossa saúde quanto às nossas propriedades, torna a vida incerta, mas também a faz valer a pena.

Estatisticamente, sabemos que, para cada automóvel produzido, a probabilidade de acidentes aumenta, trazendo riscos aos próprios usuários e a terceiros. Todavia, deixar de construir carros e estradas, como sabemos, seria uma decisão nada razoável. Da mesma maneira, ao decidirmos pelo uso medicinal de determinadas substâncias, estamos plenamente cientes de que uma pequena fração de usuários poderá sofrer problemas graves por conta de alergias e outros efeitos colaterais.

O impacto negativo do uso disseminado do “princípio da precaução” defendido por Bordin pôde ser visto com clareza durante os debates sobre alimentos geneticamente modificados. Os ambientalistas – oponentes freqüentes da liberdade – sustentavam (e alguns ainda sustentam) que, como não existem evidências sobre possíveis danos desses alimentos à saúde, eles devem ser proibidos. Segundo eles, nós (o outro lado) teríamos de provar que esses alimentos são inofensivos, antes de adotá-los. O problema aqui – e eles sabem bem disso – é que não há como provar a ausência de um efeito, assim como eu não posso provar que Papai-Noel não existe.  Karl Popper resumiu isso na famosa sentença: “não importa quantos cisnes brancos eu veja na vida, isso jamais provará que não existem cisnes negros”.

Toda ação envolve algum tipo de risco, para si ou para outrem. Se simplesmente nos deixássemos paralisar pela presença do risco, provavelmente estaríamos vivendo ainda na Idade da Pedra. Uma sociedade onde as pessoas não fazem apostas, onde qualquer conduta individual pode ser proibida em prol da busca de uma segurança extremada, é uma sociedade fadada ao fracasso. Se o princípio da precaução tivesse sido aplicado no passado, da forma como alguns pretendem aplicá-lo hoje, Cristóvão Colombo jamais teria chegado à América, Santos Dumont nunca teria voado sobre Paris com o 14 Bis e a NASA não teria colocado o homem na lua, para ficarmos apenas em exemplos gritantes.

É claro que há zonas cinzentas entre o que é intencional e não intencional; agressão e não agressão; dolo e culpa.   O motorista que dirige embriagado provavelmente não tem intenção firme de matar ou ferir ninguém, mas age com altas doses de negligência e imprudência, colocando em risco imediato a vida de muitos.  Por isso, deve ser punido exemplarmente, caso provoque acidentes.  O piloto do avião que caiu recentemente, vitimando o time da Chapecoense, certamente não tinha intenção de derrubar a aeronave, mas agiu de forma absolutamente imprudente ao optar por aquele plano de voo.  Enfim, são inúmeras as situações em que isso ocorrerá e caberá à justiça decidir se houve dolo ou culpa.  Este seria, sem dúvida, também o caso do vizinho suicida e incendiário exemplificado por Bordin.

Entretanto, este não é o caso de quem consome álcool, maconha, cocaína, cigarros, pratica esportes radicais, compra uma arma ou resolve vender um rim.  Em nenhum desses casos há a intenção deliberada de atentar contra a vida ou a propriedade de alguém – nem mesmo de causar prejuízo, senão a si próprio.  Nesses casos, não há sequer de se falar de negligência ou imprudência em relação à vida ou propriedades alheias.  Simplesmente, não há agressão a quem quer que seja.

O caso do aborto é diferente.  Nele, há intenção clara e irrecusável de atentar contra a vida de um terceiro.  Já o controle de fronteiras é uma questão controversa, que envolve a discussão sobre direitos de propriedade pública.  Mas esse é um assunto que, por ser muito complexo, fica para outra ocasião.

Enfim, considero o PNA um princípio valioso, não apenas para pautar nossas condutas individuais, mas também como base moral para a elaboração das leis que regularão a vida social, pois seu fulcro está em conceder a maior liberdade individual possível, desde que preservados os direitos à vida, liberdade e propriedade dos demais.

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