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Em economia, governo Bolsonaro é bem liberal: uma resposta a Elena Landau

Tenho respeito por Elena Landau, a “musa das privatizações” da era FHC. Tanto que ela foi convidada para um debate comigo na ocasião do lançamento do meu livro Privatize Já, uma defesa veemente do programa de privatizações no país e no mundo. Mas Landau, em que pese um viés liberal na economia, está mais para “progressista” nas demais questões. Aderiu ao Livres, que tem esse mesmo perfil. E tem sido bastante crítica ao governo Bolsonaro.

Em coluna publicada hoje no Estadão, a economista pede para deixarem o liberalismo fora “disso”, ou seja, dos atos do atual governo. Como meus leitores sabem, tenho feito várias críticas a Bolsonaro e, em especial, àquela ala mais ideológica nacional-populista, dominada pelo olavismo. Essa turma, de fato, nada tem de liberal, e inclusive costuma desprezar o liberalismo, que considera “frouxo”, coisa de “idiota útil” da esquerda.

Mas Landau não está atacando apenas esse grupo. Está detonando o governo todo, o presidente, inclusive sem levar em conta a alternativa disponível na época da eleição. Vou tentar rebater parágrafo por parágrafo, pois acho importante frisar que temos, no momento, o governo mais liberal da história de nosso país, no que tange exclusivamente a área econômica:

Por mais absurdo que pareça, a polarização que marcou as eleições do ano passado fez de Bolsonaro símbolo da candidatura liberal em oposição a Fernando Haddad, que reafirmava o modelo estatizante. Era a opção para encerrar o ciclo PT. Muitos, em total autoengano, optaram por ignorar seu passado intervencionista e embarcaram nessa fantasia. Os 200 dias de governo não trouxeram nenhuma surpresa. Bolsonaro tem sido fiel aos seus princípios.

Poucos acreditaram de fato que Bolsonaro era um liberal. O que muitos acreditaram é que ele havia evoluído em direção ao liberalismo econômico, e como prova disso tinha selecionado seu “Posto Ipiranga” para tocar a pasta, um legítimo liberal de Chicago, o ministro Paulo Guedes. Bolsonaro, mérito seu, tem dado autonomia ao ministro, que montou uma baita equipe liberal, com figuras do quilate de um Salim Mattar, justamente para tocar a agenda de privatizações. Isso deveria fazer Elena Landau celebrar essas escolhas.

A toda hora [Bolsonaro] desdenha dos que sofreram na ditadura, como revelam os comentários sobre a jornalista Miriam Leitão e agora em relação ao pai do presidente da OAB. Seu apreço por torturadores e ditadores é notório. É um governo marcado pela intolerância. A tentativa de deslegitimar dados do Inpe sobre desmatamento reflete a dominância do achismo sobre a ciência, que, infelizmente, rege boa parte das ações públicas dele e de seus mais próximos colaboradores.

Aqui Landau tem um ponto, e eu mesmo venho criticando o presidente nessas falas desastradas. Aquela charge de Bolsonaro perguntando a Guedes o que mais cortar, e o ministro escondendo uma serra-elétrica para cortar a língua do presidente, mostra a realidade de forma hilária e sucinta. Mas essa postura depõe contra o liberalismo político do presidente, seu grau de tolerância para com o contraditório, seu respeito ao próximo como indivíduo. Não diz nada sobre suas políticas econômicas.

A insistência em nomear o filho, sem nenhuma capacitação para o cargo, embaixador nos EUA é mais uma mostra do viés autoritário. Ele nem enrubesceu ao dizer: “Quero beneficiar meu filho”. Ameaçou “privatizar” a Ancine, uma agência reguladora, porque ela não impede a produção de filmes, segundo ele, impróprios. É o início de uma política cultural de Estado, típica de ditaduras. A negação de evidências empíricas na formulação de políticas públicas, que interferem desde a segurança no trânsito até a preservação ambiental, revela um retrocesso assustador e um Estado que parece pré-iluminista. Isso nada tem que ver com uma postura conservadora, é só obscurantismo mesmo.

Novamente, a parte da indicação do filho como embaixador pegou mal mesmo, mostra um flerte com o nepotismo e o patrimonialismo, mas não anula o liberalismo da equipe econômica. Sobre Ancine, há controvérsias: a posição liberal não seria a de fechar o órgão, como tem pregado o presidente? Concordo que decidir o perfil de filmes que merecem verbas é errado, mas acabar com a Ancine não seria uma medida antiliberal.

Sobre preservação ambiental, não vejo como obscurantismo a crítica ao ecoterrorismo predominante hoje. Talvez o presidente tenha pecado por excessos, mas o que está condenando merece duras críticas mesmo. Muito gringo adora a máxima “fazendas aqui, florestas lá”, querendo preservar nossas florestas para não competirem com nosso agronegócio. Até a The Economist caiu nessa. Mas negar o alarmismo dos ambientalistas não é necessariamente algo antiliberal.

Não adianta apelar para a agenda econômica para descobrir um presidente liberal, como queriam alguns eleitores, que ainda hoje se agarram nessa esperança para manter seu apoio a este governo. Bolsonaro sempre votou contra reformas que buscavam diminuir o peso do Estado, do Plano Real à privatização. O confronto com o Congresso e a intervenção de última hora a favor dos policiais puseram a reforma da Previdência em risco. Foram necessárias a habilidade e a persistência de Rodrigo Maia para salvar o governo de si próprio.

De fato, Bolsonaro nunca votou como liberal. Mas… quem mandou a proposta de reforma para o Congresso? Quem apontou Paulo Guedes como ministro? Quem escolheu Tarcísio Gomes de Freitas como ministro? E como resultado tivemos a reforma mais ousada para a Previdência, com a meta de um trilhão de reais de economia em uma década, marco brilhantemente traçado por Guedes, além do maior programa de concessões e privatizações da história do nosso país. Sim, Bolsonaro no último momento vestiu o boné corporativista, e quase prejudicou a reforma. Mas ela tem muito mérito seu, isso é inegável. E ela tem cunho liberal.

A frustração na economia é grande. Na campanha era como se existissem dois candidatos. Bolsonaro nunca teve aptidão nem gosto pelas questões econômicas. Delegou o assunto a Paulo Guedes. O apelido Posto Ipiranga não vingou por acaso. Hoje as previsíveis dificuldades de levar adiante mudanças profundas sem o envolvimento direto do presidente da República são evidentes. Além da interferência atrapalhada na reforma da Previdência, Bolsonaro desidratou o programa de privatização, que se resume à venda de subsidiárias e ao avanço no campo das concessões. Nenhuma grande estatal está na agenda, além da Eletrobrás.

Petrobras, Caixa e Banco do Brasil de fato não devem ser privatizados. Mas alguém sonhou tão alto assim? Sabíamos que não seria nada fácil desfazer décadas de lavagem cerebral estatizante. Desdenhar do programa de enxugamento das estatais é uma injustiça que Landau comete. Salim Mattar está no governo só para tocar essa agenda. Vários liberais jovens assumiram cargos importantes nessas empresas com essa missão. É verdade que o programa encontra resistência inclusive dentro do governo. A EBC continua operante para provar. Mas é inegável que o governo tem adotado uma postura liberal quando o assunto são estatais. Nem o mais liberal dos liberais, porém, conseguiria vender tudo de uma vez.

Há uma promessa de que após a aprovação em segundo turno da reforma na seguridade, um amplo programa econômico seja anunciado. Mas por enquanto só se anunciaram a volta da CPMF e os incentivos para a atividade econômica no curto prazo, com a liberação do FGTS, que não configuram um plano de reformas modernizantes. O fim do monopólio da Petrobrás, imposto pelo Cade, é uma excelente notícia, mas seus efeitos para a atividade econômica não serão percebidos no curto prazo.

Vejo, com a devida vênia, mais injustiças. O FGTS não é medida populista de curto prazo, mas uma mudança estrutural para devolver parcialmente o dinheiro antes confiscado do trabalhador. Adolfo Sachsida explicou bem isso ao anunciar o programa Saque Certo. A volta da CPMF seria proposta dentro de um contexto de redução de vários outros tributos, sem qualquer aumento da carga, o que pode ser considerado um ato liberal, defendido inclusive pelo empresário Flávio Rocha, um assumido liberal. Landau não cita a MP da Liberdade Econômica, uma medida de desburocratização bastante liberal, ou a abertura comercial, redução de tarifas de importação etc. A análise parece enviesada.

Esse quadro não significa que o liberalismo fracassou, já que ele nem sequer foi tentado. No governo FHC foi implementada uma agenda econômica liberal para dar sustentabilidade ao Real. Não havia preocupação com a classificação ideológica, como hoje. A oposição apelidou o grupo de economistas de “neoliberais”, de forma depreciativa, para caracterizar as mudanças expressivas que ocorreram na economia: nova contabilidade fiscal, amplo programa de privatização, abertura comercial, tripé macroeconômico, inovação nas políticas assistenciais e financiamento da educação – medidas que permitiram a comemoração de 25 anos de estabilidade monetária em 1.º de julho.

É verdade que uma ala da equipe econômica de FHC era liberal, sendo que a maioria era social-democrata mesmo, ainda que com viés modernizante. Houve, sim, uma agenda liberalizante, mas não era liberalismo. Hoje há uma equipe mais comprometida com essa doutrina liberal. Resta saber até onde vão conseguir avançar com a agenda reformista. Ela não depende só do governo, muito menos só da equipe econômica.

O ciclo do PT no governo provocou uma guinada no modelo econômico, com grande viés estatizante. O sucesso do partido em experiências sociais, como o Bolsa Família, criou um discurso de que os partidos de esquerda são progressistas e os de direita, liberais na economia, separando a pauta de direitos da pauta econômica. O liberalismo não é nem um nem outro, mas os dois. A definição de Vargas Llosa é primorosa: “O liberalismo não é uma receita econômica, mas uma atitude fundada na tolerância, na vontade de coexistir com o outro e numa firme defesa da liberdade”.

Aqui é preciso cautela. O liberalismo é mais elástico do que prega Landau. Sua vertente liberal é sem dúvida mais “progressista”, quase um “liberalismo” no sentido americano do termo. Ela teria em Bill Clinton um ícone, talvez. Mas há, dentro do liberalismo, uma vertente mais conservadora sim. Edmund Burke, o pai do conservadorismo, era um liberal Whig que se assustou com os revolucionários jacobinos. O liberalismo não é apenas uma receita econômica, concordo. Mas há espaço nele para uma agenda de viés mais conservador em costumes. Não é preciso ser “progressista” para ser liberal.

Natural que diante do fracasso do modelo intervencionista, e da herança negativa deixada se enfatize a importância do funcionamento livre do mercado. Mas a saída para o Estado obeso e ineficiente não é a sua negação. Num país onde metade da população não tem acesso ao saneamento e crianças saem da escola sem aprender o básico de Português e Matemática, a agenda da liberdade precisa ser mais abrangente do que o mantra “o mercado resolve tudo”. É fundamental incorporar iniciativas que criem igualdade de oportunidades e ajudem a mobilidade social.

Aqui fica mais claro que o “liberalismo” de que fala Landau é aquele democrata americano, que defende um grau de ativismo e paternalismo estatais muito acima do que os liberais clássicos aceitariam. Estado cuidando de “igualdade de oportunidades” (como exatamente?) ou de “mobilidade social” é algo que dá calafrios em muitos liberais. Soa como um estado de bem-estar social, algo um tanto… tucano. Será que Elena Landau acha que FHC era mais liberal do que Bolsonaro?

Acredito que a indignação da maior parte da sociedade com os retrocessos da agenda Bolsonaro – a negação da ciência, o conservadorismo absurdo nos costumes, o obscurantismo das ideias de seus auxiliares mais próximos, o desrespeito ao meio ambiente e a tendência a querer governar por decretos inconstitucionais – esteja abrindo os olhos dos brasileiros para a importância das ideias liberais. Neste século, o liberalismo é o contraponto perfeito à tendência mundial de crescimento do populismo nacionalista. Esta nova forma de autoritarismo se reflete na tentativa de imposição de ideias homogêneas, sem abertura para debate e controvérsias. Mas a intolerância é o avesso do liberalismo. Bolsonaro nunca foi nem nunca será um liberal. Seu governo também não. Melhor deixar o liberalismo fora disso.

Conservadorismo absurdo nos costumes? Muitos liberais clássicos são republicanos nos Estados Unidos, justamente porque entendem a importância da pauta cultural e dos costumes, especialmente diante do radicalismo crescente dos “progressistas”, cujo relativismo moral, política de identidades e ideologia de gênero têm destruído o tecido social do país. Decretos desagradam mesmo, mas todos os presidentes abusaram desse recurso, por conta do nosso sistema presidencialista torto.

Concordo que o liberalismo seja um contraponto ao nacional-populismo autoritário, que uma ala do governo adota, aquela influenciada por Olavo de Carvalho e Steve Bannon. Mas o liberalismo com viés conservador também pode ser uma boa resposta ao “progressismo” que vem destruindo os valores morais da sociedade, em nome do liberalismo. Meu livro Confissões de um ex-libertário fala bastante sobre isso: evitar os excessos de um lado sem cair no reacionarismo do outro.

Bolsonaro nunca foi um liberal, estamos de acordo. Se poderá um dia sê-lo só o tempo dirá. Até aqui, o que podemos dizer é que seu governo tem respeitado uma agenda bastante liberal, especialmente na área econômica. Um governo que tem Paulo Guedes agindo com autonomia é um governo que tem mais de liberalismo do que tudo que já vimos antes. Infelizmente – e nisso concordo com Landau – não é Guedes o presidente. Se um dia ele sair e ficar apenas Bolsonaro, influenciado pelo olavismo, aí sim, poderemos decretar a morte do liberalismo dentro do governo…

Rodrigo Constantino

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