“Uma parte de mim é multidão, outra parte estranheza e solidão; Uma parte de mim pesa, pondera; outra parte delira.” – Ferreira Gullar
São comuns discussões sobre qual o seu “founding father” preferido na “Revolução” Americana. Os mais radicais ou libertários costumam escolher Thomas Paine ou Thomas Jefferson, enquanto os mais conservadores ficam com John Adams. Já eu penso que foi a combinação entre ambos os estilos que garantiu o sucesso da empreitada.
A Coroa Inglesa abusava do “direito” de impor taxas, e a revolta era crescente na colônia. Diante de tantas injustiças, foi necessário instigar um sentimento de união e causa comum no povo, tarefa que o panfleto Common Sense, de Thomas Paine, cumpriu com perfeição. Ele queria detonar o sistema vigente, e para tanto atacou com veemência tudo aquilo que existia e que o rei representava.
Já John Adams era mais cauteloso, prudente, e tinha receio de o tiro sair pela culatra caso as 13 colônias americanas abandonassem por completo as tradições que, mal ou bem, garantiam alguma liberdade e prosperidade à sua população. Ou seja, era alguém mais inclinado a defender reformas do que uma revolução, e tinha grande apreço pela legalidade, pelo estado de direito.
Os dois Thomas, mais radicais, chegaram a se encantar com a Revolução Francesa, esta sim, disposta a apagar tudo aquilo que existira antes, a recomeçar do zero. Paine, que tinha ideias antirreligiosas radicais, chegou a ser preso em Paris. Do lado conservador, o britânico Edmund Burke olhava para aqueles jacobinos com muita preocupação, pois temia que aquela arrogância, somada ao radicalismo, fosse descambar para coisas ainda piores do que o Antigo Regime que pretendia derrubar.
Os alertas de Burke em suas Reflexões sobre a Revolução em França teriam a simpatia de um John Adams, mas não de um Paine:
Não ignoro nem os erros, nem os defeitos do governo que foi deposto na França e nem a minha natureza nem a política me levam a fazer um inventário daquilo que é um objeto natural e justo de censura. […] Será verdadeiro, entretanto, que o governo da França estava em uma situação que não era possível fazer-se nenhuma reforma, a tal ponto que se tornou necessário destruir imediatamente todo o edifício e fazer tábua rasa do passado, pondo no seu lugar uma construção teórica nunca antes experimentada?
Não se curaria o mal se fosse decidido que não haveria mais nem monarcas, nem ministros de Estado, nem sacerdotes, nem intérpretes da lei, nem oficiais-generais, nem assembléias gerais. Os nomes podem ser mudados, mas a essência ficará sob uma forma ou outra. Não importa em que mãos ela esteja ou sob qual forma ela é denominada, mas haverá sempre na sociedade uma certa proporção de autoridade. Os homens sábios aplicarão seus remédios aos vícios e não aos nomes, às causas permanentes do mal e não aos organismos efêmeros por meios dos quais elas agem ou às formas passageiras que adotam.
Se chegam à conclusão de que os velhos governos estão falidos, usados e sem recursos e que não têm mais vigor para desempenhar seus desígnios, eles procuram aqueles que têm mais energia, e essa energia não virá de recursos novos, mas do desprezo pela justiça. As revoluções são favoráveis aos confiscos, e é impossível saber sob que nomes odiosos os próximos confiscos serão autorizados.
A sabedoria não é o censor mais severo da loucura. São as loucuras rivais que fazem as mais terríveis guerras e retiram das suas vantagens as conseqüências mais cruéis todas as vezes que elas conseguem levar o vulgar sem moderação a tomar partido nas suas brigas.
E tudo isso foi para chegar ao caso atual brasileiro. O que fazer? Ainda é possível acreditar em nossas instituições, em nossos parlamentares, juízes, ministros do STF? Ainda dá para salvar o sistema democrático de dentro dele? Ou a grau de podridão chegou a um patamar tão elevado que se tornou impossível reformar a partir dos próprios corruptos interessados apenas em se autopreservar? Escrevi este desabafo em meu Facebook neste fim de semana:
Há um Thomas Paine em mim, querendo incendiar de vez o clima de revolta, para detonar esse sistema podre, cujas entranhas foram expostas de vez pela Odebrecht. Há um Thoreau em mim, pregando com José Padilha a desobediência civil. Mas há, também, um John Adams em mim, um Burke, recomendando cautela, lembrando que a revolução pode descambar para algo ainda pior, que reformas talvez ainda sejam possíveis, apesar de toda a podridão. Creio que as pessoas moderadas e conscientes estão oscilando entre esses dois polos extremos hoje. Não dá para ver tanta indecência e não ter o lado radical aguçado. Mas também não dá para conhecer a História e a natureza humana e vibrar muito com as “soluções mágicas” partindo diretamente do povo, com a intenção de “zerar a pedra” e recomeçar do nada, tabula rasa. Que tempos!
Vários leitores curtiram, concordaram, comentaram que capturei bem seus próprios sentimentos. Está difícil confiar nas mudanças necessárias com esses deputados e senadores que aí estão, enrolados até o pescoço no esquema que precisa ser combatido. Está complicado acreditar no poder moderador do STF, que deveria ser o guardião da Constituição, mas prefere agir de maneira ativista e suspeita.
Mas meu lado conservador insiste em pedir prudência, cautela, calma. Atua como uma barreira contra os instintos, o clima generalizado de indignação, a perigosa psicologia das massas. O alerta de Burke ecoa em minha mente: “A raiva e o delírio destroem em uma hora mais coisas do que a prudência, o conselho, a previsão não poderiam construir em um século”. Olhando o que temos no Brasil, dá vontade de destruir mesmo, é tentador aderir ao “pior que está não fica”.
O problema é que fica sim. Pode ficar muito pior. Quantos franceses não devem ter sentido saudades da família real, até mesmo dos insensíveis “brioches” da rainha Maria Antonieta, enquanto os jacobinos degolavam todos em praça pública, instaurando o Terror em nome da liberdade e da fraternidade? Quantos russos não devem ter lamentado as mudanças do regime do Tsar para o bolchevique, que ceifou em poucos meses mais vidas do que aquele em décadas?
Revoluções costumam ser muito perigosas. A Americana deu certo, mas fiz questão de colocá-la entre aspas no começo, pois vários pensadores a entendem como algo bem diferente, como uma continuação das tradições britânicas, de certa forma. O temperamento de um John Adams, o pragmatismo de um Benjamin Franklin, o embate de ideias de alto nível entre James Madison e Thomas Jefferson, tudo isso nos mostra que ali ocorreu uma coisa única, uma combinação rara de fatores que permitiu o sucesso das mudanças “radicais”, sem abandonar completamente aquilo que existia, que era o legado de uma ordem eficiente.
Há brasileiros hoje que pedem intervenção militar, como se os militares já não tivessem provado no passado que impedir o comunismo é uma coisa, e criar um sistema decente e livre é outra, bem diferente. Há também quem deseje o fim da República e a volta da Monarquia. Mas alguém acha mesmo que há possibilidade de isso funcionar no atual contexto?
Não adianta trocar os atores se o script continuar o mesmo. As discussões de modelos presidencialista e parlamentarista, monarquia ou república, são interessantes, mas focam mais na forma do que no conteúdo. Eis o ponto, a triste realidade que deve ser lembrada: enquanto a cultura nacional prezar pouco pelas liberdades individuais, endossar o jeitinho e a malandragem, pouco vai adiantar mexer nas personagens. A matéria-prima é de qualidade questionável.
É o povo que continua elegendo crápulas! Em nova pesquisa, Lula teria 25% dos votos em 2018, o primeiro colocado. Dá para assimilar uma coisa dessas? O Brasil será sempre um país fracassado enquanto não mudar a mentalidade do povo, a educação (que não tem nada a ver com jogar mais recursos públicos nesse sistema falido de doutrinação ideológica e “ocupações” orquestradas pela extrema-esquerda), e não fortalecer as instituições.
Por isso descarto soluções mágicas, balas de prata, messias salvadores da Pátria. Por isso entendo que o parto de um país mais livre, justo e próspero não será obra de uma só geração. Há coisas que levam tempo, como a gravidez: dura em torno de nove meses e ponto final. A gestação de nossa democracia madura, de nossa República que valha tal nome, ainda está no começo. O que temos é uma República inacabada, uma democracia capenga, e um povo em grande parte cúmplice da bagunça que se instalou em Brasília, e se repete por todas as esferas de poder. Esses bandidos não foram colocados lá por alienígenas!
O Thomas Paine em mim quer tacar fogo no que temos, por perceber como estamos distantes de qualquer coisa que possa ser enaltecida. Mas o John Adams em mim pede prudência e cautela, pois sabe que simplesmente destruir o sistema existente não é garantia alguma de colocar algo melhor em seu lugar. Só espero que as lideranças envolvidas tenham um mínimo de consciência do que está em jogo, e não abusem a ponto de tornar inevitável a predominância do Paine em cada um de nós…
Rodrigo Constantino
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