As democracias representativas são um pilar fundamental do Ocidente. A alternativa concreta seria uma “democracia direta”, populista, com algum líder carismático incorporando a “vontade geral” do povo. Um perigo enorme, desnecessário dizer. O que não significa que a democracia representativa seja uma maravilha, claro. Não é. E os populistas se aproveitam disso, especialmente na era das redes sociais, para cuspir na realidade imperfeita e propor, em seu lugar, um sistema utópico que, na prática, levaria a um autoritarismo ímpar.
Estudiosos do fascismo sempre destacaram essa característica como uma das principais para a ascensão do regime: a descrença nas instituições democráticas, vistas como um jogo de cartas marcadas pelos “donos do poder”, pelas “elites”. O líder desafiaria esses intermediários “corruptos” em nome do povo, e com força e autoritarismo poderia realizar uma limpeza geral. O nacionalismo romântico veio auxiliar essa missão, dando o sentido coletivista que faltava à empreitada, alimentado também pelo anticomunismo.
Nacionalismo, anticomunismo, populismo e autoritarismo contra intermediários: soa familiar? Mussolini era ex-marxista, nacionalista, coletivista e desprezava a burguesia liberal e o capital internacional. Queria, acima de tudo, destruir os poderes intermediários. O filósofo Olavo de Carvalho, tratado como “guru” do presidente inclusive por seus filhos, escreveu em suas redes sociais que Bolsonaro tem uma “grande oportunidade” em mãos: promover uma aliança com a “massa popular” para “esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores”. A declaração surge no momento em que muitos apoiadores do governo estão irredutíveis sobre a articulação política, vista como sinônimo de corrupção.
Se alguém ainda tinha alguma dúvida sobre a postura revolucionária com pitadas fascistas dos “jacobinos de direita”, acho que ela agora se dissipou. O chamado ao populismo autoritário não poderia ser mais evidente. O Congresso é um antro de corruptos, totalmente apodrecido, e o presidente precisa atropelar os deputados e senadores, tratorar as instituições democráticas, tudo isso “em nome do povo”. Ele conta com as “massas populares” a seu favor, representadas pelos militantes virtuais.
Os ataques histéricos de Olavo contra a ala militar do governo comprovam que ninguém escapa dessa corrupção: só o grande líder seria puro, e precisa governar com o apoio popular, contra tudo e todos na política. O mais novo alvo foi o ministro Santos Cruz, tratado por Olavo como covarde e imprestável. Olavo comentou, entre vários outros ataques pessoais:
Ao tratar o nosso presidente como se fosse um jovem desmiolado que não sabe escolher suas amizades, o Santos Cruz ofendeu brutalmente não somente a ele, mas a todos os brasileiros que depositaram nele a sua confiança. Você deve pedidos de desculpas não a mim, Santos Cruz, mas ao presidente e seus eleitores.
É no mínimo irônica a contradição, já que o próprio Olavo vive insinuando que o presidente é um idiota cercado por várias cobras traidoras. Ora, Bolsonaro não teria inteligência suficiente para escolher ministros? Nem mesmo seu vice-presidente, amigo de longa data? Mourão, afinal, é alvo dos mais pesados ataques de Olavo. O presidente, pela narrativa olavética, é um sujeito puro e inocente que não parece capaz de perceber como os militares que apontou como ministros querem o fracasso de seu governo. Um bobalhão, enfim!
Alguns jornalistas de esquerda (quase pleonasmo) dão destaque ao vocabulário chulo do filósofo, ao excesso de palavrões que usa, ou seja, à forma que utiliza nas redes sociais. Mas o problema maior é de outra natureza: é o conteúdo mesmo, com teor claramente autoritário e até fascista, inflamando os seguidores da seita contra a democracia e jogando contra o próprio governo.
Os que querem “esmagar poderes intermediários” precisam sair da retórica fácil e explicar como exatamente querem atingir essa meta. O que sugerem na prática? Isso não vão dizer, pois preferem o vago ao explícito. Vão defender mesmo mandar um cabo e um soldado para fechar o STF? Querem fechar o Congresso também? Para aqueles que não vivem de discursos vazios e revolucionários nas redes sociais, seria interessante estudar mais sobre o “presidencialismo de coalizão” para compreender os limites dos poderes do presidente num sistema como o nosso. Um artigo do criador da expressão, Sergio Abranches, ajuda nesse sentido. Eis um trecho:
A confusão sobre o presidencialismo de coalizão tem sido enorme. O centro das incompreensões tem sido as coalizões. Presidencialismo de coalizão é o nosso modelo político desde 1946. Foi quando o Brasil optou pelo presidencialismo, uma Federação com muitos estados, a eleição de deputados pelo voto proporcional e de mesmo número de senadores por estado, pelo voto majoritário, em um sistema aberto a muitos partidos políticos. Essa combinação de elementos institucionais tornou objetivamente impossível aos presidentes fazerem a maioria no Congresso com seus partidos. Eles precisam de outros partidos para alcançar a maioria e governar. Precisam de uma coalizão multipartidária. Daí, presidencialismo de coalizão.
Presidentes têm, em geral, a capacidade de negociar uma coalizão majoritária, alavancados pela vitória eleitoral. Não é, necessariamente, cooptação, conchavo, toma lá dá cá, nem corrupção. Podem negociar essas alianças com base em programas, princípios e valores. Se um presidente fez uma campanha com um projeto claro e viável de governo, ele pode usá-lo como base dessa negociação.
A Constituição de 1988 remodelou o presidencialismo de coalizão e deu ao presidente mais poderes para controlar a agenda de políticas públicas. Mas o Congresso multipartidário manteve a capacidade de bloquear a agenda presidencial e concentrou poderes de coordenação política na presidência das Mesas e nas lideranças partidárias. A principal força do Congresso vem do fato de praticamente todas as políticas públicas precisarem de leis para serem instituídas. As políticas mais relevantes, como a Previdência, foram inscritas na Constituição, requerendo maioria de três quintos (60%) dos votos, para regulá-las ou modificá-las.
Presidentes precisam, portanto, de maioria ampla e coesa para implantar políticas públicas novas, mudar as existentes, ou fazer reformas. Negociar uma coalizão majoritária não é escolha, é um imperativo. Um presidente não governa sem ela, não aprova suas medidas no Congresso, e o governo fica paralisado. Além disso, arrisca-se a ver o Legislativo aprovar medidas contrárias à sua agenda, como aconteceu na Câmara, com as emendas impositivas. Jânio Quadros e Fernando Collor não negociaram coalizões majoritárias e não governaram.
Mas presidentes não precisam trocar favores com o Congresso, distribuir benesses ilegítimas. Podem negociar a pauta e os princípios para formulação de políticas e, legitimamente, compartilhar o poder, nomeando ministros qualificados, indicados pelos partidos da coalizão, selecionados por critérios fixados pelo Executivo. A participação no governo consolida o compromisso dos partidos com as políticas acertadas.
Presidentes têm três recursos básicos para negociar uma coalizão legítima: a força do voto popular nacional que os elegeu, a liderança política e a persuasão. Com esses três recursos na mão, eles e seus líderes têm condições de conduzir a articulação política para formar a coalizão. É uma negociação, mas não precisa ser um troca-troca espúrio. Negociar é conversar, acertar pontos em comum e compartilhar o poder governamental, sem abrir mão da primazia presidencial.
Ninguém pode estar satisfeito com esse Congresso que temos. Os populistas autoritários bebem dessa insatisfação popular, legítima, para pregarem sua agenda revolucionária. Já passou da hora de os verdadeiros conservadores reagirem contra esse jacobinismo pregado em nome da direita. Essa briga pode ser desgastante, pode render perda momentânea de seguidores, mas é fundamental para a sobrevivência do movimento conservador no país. Afinal, o conservadorismo não pode ser confundido com um reacionarismo revolucionário, com um nacional-populismo autoritário, com um ataque constante às instituições democráticas, que precisam ser melhoradas, não derrubadas.
Rodrigo Constantino