Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Deploramos ter de voltar a esse mesmo assunto, mas que fazer se as esquerdas persistem a incorrer nos mesmos absurdos? Mais uma vez, uma ação – no caso, movida pelo Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Paraná, pelo Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba e o Centro Acadêmico Hugo Simas, representante dos estudantes de Direito da Universidade Federal do Paraná – quer reescrever a História.
O processo, segundo O Globo, pede a retirada das fotografias de todos os militares que governaram o Brasil entre 1964 e 1985, isto é, o nosso famigerado ciclo iniciado pelo movimento de 31 de março. Além disso, os autores ainda querem que todas as honrarias e medalhas recebidas por eles sejam cassadas. Mais pífia que a intenção em si é a motivação alegada.
“Na presente ação civil pública se pretende demonstrar que a presença dos retratos destacados distorce a história. Distorce a memória nacional. Nos faz crer que os militares ocuparam legitimamente o cargo de Presidente. Isso gera uma distorção da memória nacional, ofende a dignidade de grupos que foram perseguidos durante a ditadura e, especialmente, representa uma cicatriz na história recente do país”.
Poderíamos abordar detidamente, mais uma vez, o contexto, a tensão vivida no país em tempos de Guerra Fria, a ameaça real da esquerda autoritária. Poderíamos abordar as diferenças internas entre os grupos militares que compuseram aquele ciclo de duas décadas. Poderíamos desenvolver uma análise crítica do período, apontando o que repudiamos, o que aprovamos, o que compreendemos. Poderíamos perguntar aos esquerdistas se eles, ao mesmo tempo em que querem remover as imagens, querem também remover a Ponte Rio-Niterói, as obras de infraestrutura, ou o seu tão adorado FGTS.
Poderíamos argumentar também que não somos completamente contrários a transformações superficiais do patrimônio material da memória pública – preservar na Alemanha homenagens a Hitler, por exemplo, seria no mínimo traumático; contudo, não há nada em nossa experiência e sensibilidade social que justifique uma intervenção desse gênero nas memórias dos ex-presidentes militares, todos eles bastante distantes de poderem ser comparados a qualquer nazista, e em nossa própria história haverá pelo menos um ditador muito mais completo, Getúlio Vargas, cuja memória, imagem e nomes em obras e avenidas as esquerdas não se incomodam em deixar intocados.
Poderíamos. Parece mais divertido e menos repetitivo, contudo, refletir sobre o caráter bisonho da premissa. Nossos esquerdistas tupiniquins estão incomodados com o fato de que os presidentes militares “não ocuparam legitimamente o cargo”; já adivinhamos as futuras gerações de adestrados querendo apagar a imagem de Temer porque acreditarão ter ele “ocupado ilegitimamente o cargo” (até ocupou, mas não por conta do impeachment, e sim porque a própria eleição da Dilma foi um verdadeiro estelionato com recursos do Petrolão – mas essa é outra conversa). Insatisfeitos, estão dispostos a implantar uma cassação retroativa (!). Querem destituir da função presidentes que já não mais a ocupam, e que, aliás, já não estão, nenhum deles, neste mundo.
Ora, essa prerrogativa interessante de julgar o passado e impor-lhe sanções de ilegitimidade trará demasiada dor de cabeça aos nossos sábios esquerdistas, caso pretendam ser coerentes. O movimento de 31 de março de 1964 de fato, e isso é uma realidade objetiva, não respeitou a Constituição; pela letra fria da Constituição, João Goulart ainda estava no Brasil, portanto seu cargo de presidente não poderia ser declarado vago por Auro de Moura Andrade.
Também a República de 1946, porém, sob a égide da qual Goulart foi eleito, é oriunda de uma ruptura com a Constituição de 1937, uma carta autoritária que respaldava o regime ditatorial de Vargas, regime que reprimiu e censurou muito mais que o regime militar dos anos 60 e 70. Esta última carta era também uma ruptura com a de 1934, de vida tristemente efêmera; por sua vez, o próprio Governo Provisório de Vargas é produto de uma revolução armada, a Revolução de 30, que derrubou à força a Constituição de 1891 e seu sistema da República Velha, depondo o presidente Washington Luiz. Ilegitimamente, é claro.
Voltando atrás, precisamos punir também os próprios republicanos; toda a República, como sistema político, foi implantada ilegitimamente no Brasil. Uma quartelada, inclusive, ao contrário de 1964, sem verdadeira participação popular, derrubou o sistema monárquico. Impôs-se, de novo, pela força, com os governos militaristas de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, este último altamente repressor.
Com todos os respeitos que lhe devemos, sequer a monarquia escapa totalmente ilesa. D. Pedro II obviamente tinha o direito legítimo e dinástico ao trono, mas passou a exercê-lo mais cedo do que deveria de acordo com a Constituição, dando ocasião ao episódio que, tecnicamente ou não, foi batizado de “Golpe da Maioridade”. Se quisermos recuar ainda mais em nossa sanha justiceira, podemos considerar absolutamente ilegítimo o atrevimento de D. Pedro I, ao desafiar o direito de Portugal sobre suas colônias americanas. E terminaremos como abestados a clamar pela volta de Pindorama e o fim de todos os vestígios do negro e do europeu nestas terras, “ilegitimamente” misturados ao modo de vida nativo.
Estas asneiras, empobrecedoras do debate público, aprisionando-o na inércia dos dramas passados, alijando-o das cruentas dores dos dramas presentes e comprometendo as atitudes necessárias para evitar os dramas do futuro, poderiam nos dar ensejo a querer a cassação retroativa do nascimento dos infelizes que as propõem. Melhor, porém, seguir resistindo, e trabalhar muito para garantir que, amanhã ou depois, não queiram também “apagar” o que nós estamos fazendo hoje, a fim de semear suas distorções doentias.
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