Minha carta aberta a FHC e depois meu desabafo geraram bastante repercussão, e impressionou a quantidade de leitores do blog revoltados com o ex-presidente tucano. Alguns chegaram a “brincar”, usando o próprio bordão petista, que é, sim, tudo “culpa de FHC”, pois graças a ele o PT estaria onde está. Outros mencionaram a “teoria das tesouras”, alegando que o PSDB é uma espécie de “linha auxiliar” do PT numa estratégia perversa comunista, algo um tanto conspiratório para o meu gosto.
Um terceiro grupo questionou se Fernando Henrique não estaria gagá, ou então sob sequela dos efeitos da maconha, cuja legalização ele transformou em uma das mais importantes bandeiras no momento. Muito cruel. Por fim, um último grupo levantou a hipótese de ele ter o “rabo preso”, e por isso ter de adotar postura tão leniente com os bandidos disfarçados de políticos no PT.
Tudo errado, em minha opinião. FHC não é “linha auxiliar” do PT, tampouco está gagá ou sob efeito da erva. Não creio ter “rabo preso” também. Para mim, Fernando Henrique é, como quase todo mundo, uma figura ambígua, com qualidades e defeitos. Como presidente, abandonou parcialmente sua visão de mundo de intelectual de esquerda, e fez importantes reformas para o país, mas também plantou as sementes de vários programas “sociais” ruins, como as cotas raciais.
Como ex-presidente, teve postura quase de estadista, ainda mais se comparado ao Lula. Soube se afastar das intrigas do poder, manter uma distância saudável do dia a dia da política, ao contrário de Lula, que nunca abandonou de verdade o Palácio do Planalto e os palanques, voltando a fazer bravatas sensacionalistas como se ainda fosse um pelego oportunista disputando o poder, e não alguém que já havia exercido o importante cargo de presidente. Perto do sapo, o intelectual realmente parece um príncipe!
Mas eis, talvez, o grande problema: FHC é “diplomático” demais. O que se confunde, às vezes, com covardia, negligência, leniência, cumplicidade. E isso se deve, em minha opinião, ao seu passado de socialista fabiano. Para quem não sabe, o socialismo fabiano nasceu em Londres, e os intelectuais ingleses, mesmo quando de esquerda, costumam ser educados, refinados, quase esnobes. Está na alma de sua elite.
Os fabianos não queriam uma revolução armada como os comunistas, e sim uma “evolução” gradual rumo ao socialismo. Ícones da intelectualidade como George Bernard Shaw, Virginia Wolf e Bertrand Russell fizeram parte do movimento, liderado pelo casal Sidney e Beatriz Webb. Os comunistas muitas vezes encaravam o grupo como inimigo, pois achavam que suas bandeiras eram tímidas demais e serviam para impedir a revolta do proletariado, que ficaria satisfeito com algumas poucas conquistas, como salário mínimo e rede social de proteção.
Talvez por isso até hoje os petistas insistam na tese ridícula de que o PSDB é um partido de direita, e não de esquerda. Os tucanos se inspiraram nos fabianos, em especial Fernando Henrique Cardoso, com sua postura de “lorde tupiniquim”. Para “bater” no PT, só com luvas de pelica, com muita delicadeza. Por isso a fama de “mulher de malandro”, que só apanha, mas sempre volta, pedindo mais. Não é da natureza de FHC comprar briga, ainda mais com seus “dissidentes” de esquerda.
É inegável que Fernando Henrique sentiu uma pontada de satisfação quando Lula chegou ao poder e recebeu dele a faixa de presidente. FHC não esconde o orgulho pela trajetória do metalúrgico de esquerda. É, novamente, sua alma de fabiano. Um liberal, que valoriza o mérito individual e o empreendedorismo que efetivamente cria riqueza, jamais compartilharia desse orgulho de alguém que nunca passou de um oportunista, um bravateiro populista, um líder sindical sem escrúpulos.
Chegamos, então, ao cerne da questão: FHC trata Lula e o PT com condescendência demais, não por ser parte da uma conspiração gramsciana, ou por ter “rabo preso”, ou ainda por estar gagá ou “fumado”, e sim porque realmente enxerga Lula como alguém que merece respeito, apesar de tudo. Os fabianos condenam os métodos dos “revolucionários”, mas não seu suposto idealismo, seu objetivo final. Para FHC, o PT realmente deseja melhorar a vida dos pobres, e eles apenas divergem no grau de concessão que deve ser feita ao “mercado”, ao capitalismo.
O PSDB evoluiu mais, em resumo. É social-democrata, ou seja, respeita o básico da economia de mercado e aceita o jogo democrático. O PT não. O PT está mais para um movimento revolucionário que usa a democracia e o próprio mercado para seu objetivo de se perpetuar no poder e mudar essencialmente a sociedade, de cima para baixo. O PT é esquerda carnívora, o PSDB herbívora. O PT é bolivariano, o PSDB não. Mas não peçam muito mais do que isso aos tucanos da velha guarda, pois está, provavelmente, acima de sua capacidade rechaçar com veemência o que, por sua ótica, não deixa de ser um irmão rebelde e desgarrado.
O grande problema, que Fernando Henrique parece não ter percebido ainda, é que o Brasil está mudando. Boa parte da população acordou para o engodo populista que é o discurso de esquerda, que monopoliza as virtudes e a preocupação com os pobres. É questão de tempo até muitos compreenderem que o liberalismo é o único caminho. Como comenta o liberal Paulo Guedes em sua coluna de hoje, FHC já se deu conta de que há uma total descrença no sistema político, mas ainda não absorveu, ironicamente, uma mensagem de Marx, válida tanto para tucanos como petistas: enormes somas passando pelo estado são um convite à corrupção.
Ou seja, a social-democracia que o PSDB prega também contribuiu para o estado calamitoso em que o Brasil se encontra. Ainda assim, as divergências são naturais e até saudáveis numa democracia, e como já cansei de repetir, sempre haverá espaço para uma esquerda civilizada na disputa pelo poder. O PSDB é como o Partido Democrata nos Estados Unidos ou o Partido Trabalhista na Inglaterra. Já o PT não. Seus métodos são antidemocráticos, suas amizades com as piores ditaduras e sua sociedade no Foro de São Paulo são inaceitáveis, seu cinismo crônico faz mal ao debate político e a constante demonização dos adversários, tratados como inimigos mortais, impede qualquer aliança pragmática em prol do país.
É isso que FHC ainda não se deu conta, talvez por uma nostalgia dos tempos de socialista fabiano que discordava, mas com respeito e quase admiração, dos companheiros de luta. FHC provavelmente faz parte do time dos que lamentam os “desvios” e as “manchas no currículo” de figuras como José Dirceu e Lula, não daqueles que sabem que o mensalão e o petrolão apenas revelaram ao público sua verdadeira natureza. Em sua coluna no domingo, FHC deixa claro que ainda enxerga no PT um potencial de mudança, de amadurecimento, ignorando seu DNA, sua essência, sua raiz revolucionária:
Decidam a Justiça, o TCU e o Congresso o que decidirem, continuaremos a ter uma Constituição democrática a nos reger e a premência em reinventar nosso futuro. Tomara que as aflições pelas quais passam o PT e seus aliados lhes sirvam de lição e os afastem da arrogância e do contínuo desprezo pelos adversários, até agora tratados como inimigos.
É hora de reconhecerem de público que a política democrática é incompatível com a divisão do país entre “nós” e “eles”. Para dialogar, não adianta se vestir em pele de cordeiro. Fica a impressão de que o lobo quer apenas salvar a própria pele. Mais ainda, passou da hora de o lulopetismo reconhecer que controlar a inflação e respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal nada têm a ver com neoliberalismo, senão que são condição para que as políticas sociais, tanto as universais como as específicas, possam ter efeitos duráveis.
Em suma, cabe aos donos do poder o mea-culpa de haver suposto sempre serem a única voz legítima a defender o interesse do povo.
Hoje os jornais já dizem que, se o PT fizer esse reconhecimento público, FHC até aceitaria o diálogo. Ou seja, não aprendeu nada! Não entendeu, ainda, o que é o PT, qual a sua natureza. E não conseguiu ver essa obviedade pois sua lente está obnubilada pelo viés ideológico, pelo ranço do socialismo fabiano. Não acho que seja má-fé, tampouco algum tipo de pacto revolucionário arquitetado nos bastidores. Também não creio em medo por algum “rabo preso”.
Acho que FHC é apenas um velho socialista fabiano mesmo, alguém que evoluiu muito desde os tempos de “intelectual”, mas que não conseguiu abandonar completamente sua visão equivocada de mundo. E dela faz parte a “elegância” diplomática que mascara a pusilanimidade diante dos “revolucionários”, assim como o excesso de concessões ao adversário que o enxerga como inimigo mortal. A mulher de malandro sempre encontra uma desculpa para retornar, pois dessa vez sim, ele vai aprender e se tornar um gentleman com ela. Até o próximo olho roxo…
Rodrigo Constantino