Casado com e filho de psicanalista, passei a notar a grande quantidade de gente da área que adere à esquerda “progressista” ou mesmo marxista. Tendo absorvido alguma coisa por osmose, e lido alguns livros do próprio “pai da psicanálise”, creio haver alguma incompatibilidade nesse casamento forçado entre Freud e Marx, tal como Erich Fromm realizou. Pretendo, com a ressalva de não ser um especialista no assunto, sustentar a tese de que Freud estaria bem mais para o lado conservador.
Primeiro, os motivos pelos quais acho que há a confusão. O psicanalista deve chegar ao consultório desprovido de “preconceitos”. Ele está ali para escutar e eventualmente fazer pontuações, não para julgar. Atua como uma espécie de “dejeto humano” das angústias dos pacientes, e deve deixar de fora qualquer viés moralista. Não lhe cabe dar conselhos ou “consertar” ninguém.
Dessa postura profissional, muitos acabam extrapolando para um relativismo moral como estilo de vida. Confundindo prática de consultório com valores de cidadão, esses psicanalistas se sentem impelidos a adotar a máxima de que “tudo é igual”, rejeitando a ideia de um código de valores morais minimamente objetivo. Claro que, na prática, tal relativismo é seletivo e hipócrita, como todos. Mas sabemos como ele leva ao típico discurso progressista.
Outro aspecto é o fato de que Freud realmente foi subversivo em relação a muitos pontos, como o tabu da sexualidade infantil. Freud era, acima de tudo, um homem da ciência, em busca da verdade, até de forma obsessiva. Sem medir esforços para tanto, estava disposto a relatar suas descobertas, doesse a quem doesse.
Sendo ainda por cima um “judeu ateu” que via nas religiões uma “neurose obsessiva” da humanidade, o elo entre Freud e a esquerda antirreligiosa parecia evidente. Mas será que faz mesmo sentido colocá-lo ao lado de marxistas ou dos progressistas modernos que subvertem todos os valores tradicionais da civilização? Sou da opinião de que Freud detestaria andar em tais companhias.
Como escreve seu biógrafo Peter Gay, Mikhail Bakhtin, um dos raros teóricos marxistas a levar Freud a sério, concluiu que o “freudismo” era uma “doutrina profunda e organicamente alheia ao marxismo” – uma observação que Freud teria aplaudido com alívio e prazer.
Além disso, mesmo em seus ataques mais virulentos às religiões, ele reconheceu sua importância: “A religião, é claro, desempenhou grandes serviços para a civilização humana. Contribuiu muito para domar os instintos associais. Mas não o suficiente”.
Filho do Iluminismo, Freud depositava grande esperança na razão humana, na ciência que mergulha em todos os terrenos, sem limites ou áreas proibidas. Ainda assim, reconhecia os claros limites da própria razão. Como escreve Peter Gay em Um judeu sem Deus:
Freud era um iluminista dos tempos modernos, tanto neste quanto em outros tantos aspectos. A seu ver, a psicanálise ainda era uma jovem ciência, exigindo muito mais pesquisas. Mal havia arranhado a superfície das estruturas e do funcionamento da mente. Gostava de dizer que ela havia desferido no narcisismo do homem o mais consistente dos golpes. Primeiro, Copérnico havia atacado esse narcisismo expulsando a morada do homem, a Terra, do centro do Universo. Em seguida, Darwin rebaixou o orgulhoso homem ao status de um animal. Agora, ele demonstrava que a razão não é a senhora de sua própria casa.
A razão está longe de ser onipotente, portanto. E não creio que Freud aplaudiria a geração “mimimi”, extremamente narcísica e hedonista, que confunde seus desejos e impulsos com direitos no “vale tudo” da amoralidade contemporânea. Para Freud, arrisco dizer que isso seria visto como pura “pulsão de morte”, um instinto primitivo de autodestruição. Diz ele: “Mesmo no homem atual os motivos puramente racionais pouco podem fazer contra impulsões apaixonadas. Quão mais fracos, então, eles devem ter sido no animal humano das eras primevas!”
E aqui começamos a entrar na seara dos motivos pelos quais vejo em Freud mais um conservador do que um progressista: tinha uma visão um tanto pessimista da natureza humana, cética, desconfiada. O oposto de um Rousseau com seu mito do “bom selvagem”, ícone de muito pensamento de esquerda na atualidade. Quem parte de uma premissa pessimista do animal homem, capturado pela metáfora bíblica do “pecado original”, dificilmente se torna um progressista.
Em Totem e Tabu, Freud vai buscar na antropologia as origens para certas tradições, como o canibalismo e o incesto. Ele quer compreender o que está por trás de determinados comportamentos sociais. Mas ele jamais pretendeu, com isso, retirar a importância desses tabus para a preservação do tecido social. Ao contrário: os tabus existiriam por que há uma predisposição ao ser humano de desejá-los, e por isso devem ser contidos.
Diz ele que “a base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente”. Creio que Freud teria verdadeira ojeriza a essa agenda progressista que tenta quebrar todos os tabus remanescentes, como se dar vazão aos instintos fosse a melhor coisa do mundo. No estudo, Freud cita com aprovação um longo trecho de Frazer, na íntegra, por estar “essencialmente de acordo” com seus próprios argumentos. Eis a conclusão:
Desse modo, em vez de presumir da proibição legal do incesto que existe uma aversão natural a ele, deveríamos antes pressupor haver um instinto natural em seu favor e que se a lei o reprime, como reprime outros instintos naturais, assim o faz porque os homens civilizados chegaram à conclusão de que a satisfação desses instintos naturais é prejudicial aos interesses gerais da sociedade.
O que nos remete a outra característica comum dos progressistas que Freud rejeitaria: o relativismo cultural. A ideia de que sequer devemos usar os conceitos de barbárie e civilização, pois existiriam povos “apenas diferentes’, seria encarada com espanto pelo pai da psicanálise. Ele compreendia muito bem o preço da civilização, o custo que ela cobrava, em mal-estar constante, para que homens pudessem viver em sociedade e com certa harmonia.
Seu melhor livro, em minha opinião, é justamente a evidência definitiva de seu viés conservador: O mal-estar na cultura. Todos aqueles que são vítimas da perpétua busca pela Felicidade, esse sentimento pleno e utópico, como se fosse possível encontrá-la de forma definitiva, uma completude que aplacasse as angústias humanas, deveriam ler com atenção o livro.
Para seu autor, simplesmente não estamos programados para a felicidade: a toda satisfação segue imediatamente um renovado desejo e uma nova necessidade. Freud retrata o homem como um ser desamparado, que pode apenas mitigar seu sofrimento, jamais superá-lo totalmente. Nossa natureza seria propensa à violência, marcada por um impulso incontrolável de agressão.
Imagino Freud tendo ataques de risos diante das bandeiras “pacifistas” da esquerda moderna, como se o mundo fosse um parque de diversão e fosse possível manter a paz por meio do diálogo em um chá das cinco com os terroristas islâmicos, por exemplo. Tal infantilismo boboca jamais teria em Freud um aliado, pois ele sabia melhor do que a besta homem, sem os freios da civilização, é capaz.
Freud não tinha simpatia alguma pelo romantismo das elites progressistas com o homem primitivo. Ele lembra que a palavra “cultura” designa “a soma total de realizações e disposições pelas quais a nossa vida se afasta da de nossos antepassados animais, sendo que tais realizações e disposições servem a dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação das relações dos homens entre si”.
Esqueça aquela visão idílica de um passado místico em contato com a natureza, como em Avatar, ou de seres primitivos dançando felizes da vida, distantes das maldições do capitalismo. Freud jamais foi tão inocente assim. Ao contrário: ele valorizava os avanços da cultura, especialmente a ocidental, e o que isso significava em termos de sinais de limpeza e de ordem: “Na verdade, não nos surpreendemos se alguém coloca o uso do sabão como verdadeiro medidor cultural”.
Psicanalistas freudianos enaltecendo o estilo de vida “descolado” dos povos menos civilizados é algo realmente estranho. E mais: Freud tinha viés claramente elitista, nunca abraçou o discurso populista de que a verdade está com o “povo”, com as “massas”, que ele via com extrema perplexidade e desconfiança, por suprimir no indivíduo o senso de responsabilidade. Diz ele:
Porém, através de nenhum outro traço julgamos caracterizar melhor a cultura do que através da estima e do cultivo das atividades psíquicas superiores, das realizações intelectuais, científicas e artísticas, do papel dirigente concedido às ideias na vida das pessoas.
Alguém consegue imaginar Freud aplaudindo o programa “Esquenta”, de Regina Casé, e tratando as porcarias das músicas e letras de funk como “arte” apenas para endossar o covarde mundo politicamente correto de que “tudo é arte”? Seu ataque às massas continua em outros textos, como em O futuro de uma iluão:
Acho que se tem de levar em conta o fato de estarem presentes em todos os homens tendências destrutivas e, portanto, anti-sociais e anticulturais, e que, num grande número de pessoas, essas tendências são suficientemente fortes para determinar o comportamento delas na sociedade humana.
[…] É tão impossível passar sem o controle da massa por uma minoria, quanto dispensar a coerção no trabalho da civilização. Já que as massas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm amor à renúncia instintiva e não podem ser convencidas pelo argumento de sua inevitabilidade; os indivíduos que as compõem apóiam-se uns aos outros em dar rédea livre a sua indisciplina.
Trata-se de um ponto de vista elitista, que vai na mesma linha do que o conservador Ortega y Gasset diz em A rebelião das massas. Freud não acharia graça alguma nas bandeiras demagógicas de esquerda, que colocam no “povo” e na “democracia direta” a salvação do mundo. Sua visão sobre os “libertários”, no sentido de defesa das “liberdades individuais plenas”, não era nada favorável também:
A liberdade individual não é um bem cultural. Ela era a maior possível antes de qualquer cultura; contudo, naqueles tempos ela em geral não tinha valor, pois o indivíduo dificilmente era capaz de defendê-la. Por meio do desenvolvimento cultural, ela sofreu restrições, e a justiça exige que ninguém seja poupado de restrições. Aquilo que numa comunidade humana se agita como ímpeto libertário pode ser uma rebelião contra uma injustiça ainda existente e se tornar favorável a um desenvolvimento posterior da cultura, permanecendo com ela compatível. Mas ele também pode se originar de um resto de personalidade originário, não domado pela cultura, e se tornar o fundamento da hostilidade contra essa cultura. Portanto, o ímpeto libertário se dirige contra determinadas formas e exigências da cultura ou contra a cultura em geral. Não parece que se possa levar o homem, através de algum tipo de influência, a transformar a sua natureza na de um cupim; é provável que ele sempre defenda sua pretensão à liberdade individual contra a vontade da massa. Uma boa parte da luta da humanidade se concentra em torno da tarefa de encontrar um equilíbrio conveniente.
Por meio dessa longa passagem, alguém consegue imaginar Freud defendendo os black blocs, os revolucionários do PSOL, os discípulos de Foucault ou Chomsky? Pouco provável. Ele sabia que a sublimação dos impulsos é um marco da civilização, e essa é uma visão bastante conservadora. Quem não renuncia aos impulsos – ou parte deles – não é aculturado. Um recado que vai ao encontro do que Edmund Burke, o “pai do conservadorismo”, já dizia: só é livre quem sabe controlar seus apetites.
E, por compreender tão bem a natureza humana, Freud sabia que a conquista da civilização nunca era garantida: “Em consequência dessa hostilidade primária dos homens entre si, a sociedade aculturada está constantemente ameaçada pela ruína”. Eis um alerta extremamente caro aos conservadores, que enxergam os pilares que sustentam a civilização como frágeis, enquanto os progressistas e muitos libertários assumem a vida em Paris ou Nova York como um dado da natureza, uma realidade garantida.
Para Freud, os comunistas que acreditam ter encontrado o caminho para a redenção do mal estão profundamente equivocados. Eles acham que o homem é inequivocamente bom, e que a propriedade privada é o grande mal. Mas a agressão não foi criada pela propriedade, diz Freud, “reinou quase irrestrita nas épocas pré-históricas, quando a propriedade ainda era muito escassa, já se apresenta no quarto das crianças”.
Como alguém que defende essa visão realista da própria infância pode ser um progressista? Está mais para William Golding com seu magistral O Senhor das Moscas, livro clássico que retrata como a maldade e a agressão fazem parte de nossa estado natural. O homem precisa ser domesticado pela cultura, justamente o contrário do que os filhotes de Rousseau defendem.
O ensaio já está longo demais, e quem teve fôlego para chegar até aqui já deve ter percebido que Freud não pode mesmo ser jogado no lado dos progressistas, muito menos dos marxistas. Se ainda restou alguma dúvida, concluo com a opinião do próprio Freud sobre o marxismo, visto por ele como uma “visão de mundo” de cunho religioso e autoritário:
O marxismo teórico, tal como foi concebido no bolchevismo russo, adquiriu a energia e o caráter autossuficiente de uma Weltanschauung; contudo, adquiriu, ao mesmo tempo, uma sinistra semelhança com aquilo contra o que está lutando. Embora sendo originalmente uma parcela da ciência, e construído, em sua implementação, sobre a ciência e a tecnologia, criou uma proibição para o pensamento que é exatamente tão intolerante como o era a religião, no passado. Qualquer exame crítico do marxismo está proibido, dúvidas referentes à sua correção são punidas, do mesmo modo que uma heresia, em outras épocas, era punida pela Igreja Católica. Os escritos de Marx assumiram o lugar da Bíblia e do Alcorão, como fonte de revelação, embora não parecessem estar mais isentos de contradições e obscuridades do que esses antigos livros sagrados.
Rodrigo Constantino
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