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Funcionário Público Liberal: pode isso, Arnaldo?
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Por Ricardo Bordin, publicado pelo Instituto Liberal e originalmente no blog do autor

Recebi o seguinte questionamento de um leitor do website do Instituto Mises Brasil (IMB):

Comecemos pelo princípio: O liberalismo clássico professa que, em uma determinada sociedade, o mercado deve desempenhar papel preponderante sobre o Estado – e não o contrário, como ora ocorre em nosso país. Com os partidários de tal linha de pensamento eu procuro ombrear esforços na dura empreitada de mudar a mentalidade assistencialista de nosso povo – muito embora minha orientação seja mais condizente com o conservadorismo, o qual também postula um governo enxuto, mas não se fia em mudanças repentinas e abruptas, e preconiza o respeito (e não o engessamento, bom que se diga) aos valores e às tradições transmitidos por gerações anteriores.

Libertários e anarcocapitalistas, a seu turno, creem que a ordem espontânea e a livre transação entre os indivíduos são suficientes para produzir todo e qualquer bem demandado pelas pessoas – o que, portanto, dispensaria por completo a existência do Estado (inclusive suas forças armadas, polícias, Judiciário, e tudo o mais). Em relação a esses liberais, reconheço a importância de seu discurso na medida em que ele desloca vigorosamente o debate político para a direita, tal qual faz o PC do B, por exemplo, para o lado esquerdo. E só. Seus argumentos são muito bons, mas seus pontos de vista mais extremados, a meu ver, não resistem à aplicação prática (esse tema dá muito pano para manga, e, por isso, limito-me aqui a simplesmente discordar dos adeptos destas correntes, sem tecer maiores considerações). Basicamente, não compartilho da convicção de que “imposto é roubo” – mas que imposto demais é imoral, isso é.

Assim não fosse meu posicionamento, e meu blog não teria como epíteto “½ liberal, ½ conservador e 0/0 esquerda”.  Ou seja, receber honorários provenientes de impostos e fazer parte do quadro de empregados estatal não costuma tirar meu sono, a não ser por uma diversa gama de fatores que passo a enumerar, e por conta de seus desdobramentos, aí sim, muitos brasileiros, com certeza, passam noites em claro – o que, por sinal, motiva-me a redigir um artigo madrugada adentro, como hoje, por exemplo. Quem sabe mais funcionários públicos se condoem com tal empenho e sofrem uma epifania, pois não?

A garantia do cumprimento de contratos firmados livremente entre duas ou mais partes, bem como o direito de propriedade, é sagrada para os liberais. É, pois, a segurança jurídica que permite que pessoas poupem para investir no longo prazo. E uma das facetas desta indispensável condição para o desenvolvimento econômico de uma nação é, justamente, a correta observação das cláusulas dos contratos de trabalho acordados entre empregados e empregadores. O trabalhador entrega seu tempo e energia em prol de um empreendimento confiando que receberá, em retorno, uma contraprestação, pecuniária ou na forma de utilidades em geral, previamente ajustada, verbalmente ou por escrito, com o empreendedor – e, em função de tal, assume compromissos financeiros e planeja suas contas.  Caso assim não ocorra, podemos estar diante de uma fraude.

Se João aceitou trabalhar 44 horas semanais por R$2.000 mensais, mas precisa laborar além desta jornada regular de forma habitual, sem por esta prorrogação de horário ser remunerado, e sendo impedido até mesmo de registrar tal fato em seu controle de ponto, temos uma fraude contratual constatada.

Se todas as faturas de Pedro vencem no dia dez de cada mês, mas ele recebe seu salário apenas no dia vinte há tempos, e, ainda por cima, é instado a declarar, em seu comprovante de pagamento de salário, que sua remuneração foi quitada na data correta, temos uma fraude contratual constatada.

Acreditem, tais situações são extremamente comuns nas relações laborais no Brasil. Foram apenas dois exemplos bem corriqueiros, mas que fique claro que, sem a polícia administrativa para vigiar o cumprimento desses contratos de trabalho (inclusive em ações fiscais deflagradas por solicitação dos próprios contratados prejudicados), inúmeros Pedros e Joãos irão arcar, eles mesmos, com a conta do risco da atividade empresarial, e acabarão por abarrotar, tão logo sejam desligados de suas respectivas empresas, as salas de audiência da Justiça do Trabalho. É claro que, constantemente, o judiciário trabalhista puxa demais a brasa para o lado dos reclamantes, e a inspeção do trabalho idem, mas a polícia judiciária (Civil, PM  e Federal) também comete excessos por vezes, e nem por isso deixa de ser necessária.

Em algum momento, o contratante que frustrou as expectativas do contratado precisa responder por sua intrujice, indenizando a parte lesada. Ou isso, ou estamos na casa da mãe Joana – o que não condiz com os preceitos liberais de forma alguma. Se alguém vende gato por lebre, desrespeita o direito de propriedade, atentando contra o que foi previamente pactuado, e gerando instabilidade generalizada. Não por acaso, todos os países signatários da convenção nº 81 da Organização Internacional do Trabalho mantém em seus quadros funcionais inspetores do trabalho – e, neste rol, figuram nações notórias por sua liberdade econômica, como Singapura e Hong Kong.

É claro que, com elevada frequência (no momento que atravessamos, inclusive), os empregadores não logram cumprir os contratos firmados com seus empregados porque o estado em que se encontra nossa economia os estrangulou de tal forma que não lhes resta alternativa. Em tempos de bust após o aquecimento forçado dos índices econômicos durante anos a fio, sob o jugo de governos “desenvolvimentistas” e seus entusiastas da Keynesianismo, não pagar o 13º salário ou deixar de efetuar os recolhimentos devidos ao FGTS virou lugar comum – não por menoscabo dos empresários, mas sim porque uma parcela significativa deles está tentando, a duras penas, manter ativas suas companhias.

Certamente nem todos logram sucesso em seus esforços de reestabelecimento, e muitos precisam, pois, enxugar sua folha de pagamentos – fato facilmente observável no ofício deste escriba, e que, em larga medida, o forçou a observar esta conjuntura pelo ângulo liberal. Quando a realidade fala, as ideologias de esquerda abaixam as orelhas, já diz o provérbio.

E eis porque acredito que seria benéfico que a livre negociação entre entidades representativas patronais e dos trabalhadores pudesse prevalecer sobre a legislação pátria, principalmente no intuito de reduzir o desemprego e proporcionar uma menor incidência de inadimplemento de contratos de trabalho, tal como acima referido. Muito se fala em garantir direitos conquistados e evitar retrocessos, mas a melhora sustentável das condições de trabalho no Brasil somente se dará a partir do incremento da produtividade nacional.

Senão vejamos: se o trabalhador alemão labora, em média, 1.378 horas por ano, ao passo que seu congênere brasileiro trabalha em média 1.723 horas anuais, é porque na Alemanha um trabalhador produz US$61,5 por hora de trabalho, enquanto Brasil seu correspondente produz US$16,4 no mesmo lapso temporal, ou seja, a produtividade do Fritz é 3,75 superior a do Pedro e do João, possibilitando ao germânico mais lazer e qualidade de vida – e, claro, uma renda per capita bem superior.

Mas tal discrepância não se deve unicamente a fatores ligados ao trabalhador (como educação e qualificação profissional), mas está, outrossim, intimamente ligada à evolução dos bens de capital (máquinas e demais meios de produção e logística) disponibilizados pelo empregador – o que influencia, inclusive, nos níveis de segurança e saúde nos postos de trabalho.  E enquanto nosso desenvolvimento econômico seguir atravancado por leis com as quais nem mesmo países já desenvolvidos podem se dar ao luxo de contar, dentre outros obstáculos ao empreendedorismo, vai ficar difícil imaginar esta evolução ocorrendo.

Alguém pode estar, eventualmente, perguntando-se por que Pedro e João simplesmente não pediram demissão, já que estavam descontentes com os reaistermos de seus contratos laborais. Ora, porque o número de pessoas ofertando a própria mão de obra no mercado de trabalho, em relação à correspondente demanda, costuma ser muito desfavorável a quem está distribuindo currículos, pelo motivo de sempre: empreender no Brasil é uma verdadeira aventura por uma selva de regulações e burocracias desnecessárias para abrir, fechar e manter o estabelecimento funcionando; juros altos; pesada e complexa carga tributária; intervencionismo estatal desmesurado, e por aí vai.

Se, portanto, desejamos que Pedro e João possam pleitear disposições contratuais mais favoráveis, é necessário possibilitar que exista um cenário onde várias empresas demandam sua mão de obra. Caso contrário, eles serão apenas mais dois em meio a tantos milhões de desempregados e subempregados, e precisarão aderir a quaisquer condições impostas pelo empregador – é isso ou ficar sem dinheiro algum no bolso. Esta é a realidade, por sinal, dos trabalhadores que se submetem a condições degradantes, quase sub-humanas, nos rincões do Brasil: dividir a cocheira com o cavalo ou comer alimento de procedência duvidosa é refresco perto de ficar sem sustento. Se há alguém explorando, é porque existe outro alguém que acha que ser explorado é melhor do que a inanição.

Neste caso, focar apenas no “vigiar e punir” constitui, em verdade, enxugar gelo – assertiva fartamente comprovada pelo alto número de trabalhadores que, depois de resgatados das condições precárias de vivência, retornam, em pouco tempo, ao mesmo local pedindo emprego novamente. Se não tem tu, vai tu mesmo, diz a sabedoria popular. De pouco adianta todo o aparato estatal para salvaguardar a dignidade dos indivíduos no ambiente de trabalho se eles não puderem ter trabalho. Interessante notar que “progressistas” costumam apregoar que o foco no combate à criminalidade não deve ser feito com viés punitivo, e sim focado na prevenção, mas o mesmo, aparentemente, não se aplica às relações laborais. Não por acaso, os índices de trabalho infantil, sem registro e em condições análogas à escravidão nas regiões Sul e Sudeste são menores do que os verificados nos restante do país – e isto não é uma coincidência.

E é com esperanças de que mudanças nesta conjuntura venham a acontecer que procuro engendrar esforços junto aos demais correligionários do liberalismo. Enquanto elas não vem, não resta muito mais a fazer, pois os atos administrativos são, em sua maioria, vinculados, ou seja, devem ser praticados diante de determinadas situações fáticas, independente da vontade do agente público. É como um policial que, ao constatar que um homicídio foi cometido por um bandido de 16 anos, gostaria muito, motivado por suas crenças, de encarcerá-lo, mas, diante do ordenamento pátrio, deve apenas limitar-se a apreendê-lo, para que seja submetido a medidas “socioeducativas”.

Tal qual o renomado sargento Fahur, que usa sua mídia social para convencer as autoridades da necessidade de endurecer a legislação penal, ou como a professora Paula Marisa, que usa seu canal no Youtube para mostrar como a Educação no Brasil está deseducando nossos filhos, ou ainda como Sergio Renato de Mello, Defensor Público que empresta seu conhecimento e sua visão de mundo ao Instituto Liberal, estamos todos no mesmo barco: queremos promover mudanças, mas elas não virão (diretamente) por nossas mãos. O máximo que podemos fazer é subsidiar com informações aqueles que detém, de fato, tal poder: o povo.

Não se trata, portanto, de pessoas incoerentes ou ingratas com o ganha-pão, mas sim de indivíduos que querem fazer seu trabalho de forma mais benéfica para a população. Contraditório, sim, é socialista de iPhone, aluno de Humanas criticando o livre mercado ou padre de igreja católica sentando o malho no conservadorismo. Estes mereceriam a internação compulsória.

Não sei se foi a intenção do leitor inquiridor, mas talvez ele deva se perguntar porque não pedimos exoneração de nossos cargos e vamos trabalhar na iniciativa privada. Bom, convém começar ressaltando que, conforme é sabido, a ascensão das bandeiras liberais e conservadoras é um fenômeno extremamente recente em nosso país. Como bem explica Bruno Garshagen em sua obra “Pare de acreditar no governo”, a tradição populista brasileira remonta o período do descobrimento. Daí que um funcionário público que, em idade avançada, após uma vida inteira sem interessar-me muito em política, descobre, do dia para a noite, que estava andando na direção errada, não tem como consertar a trajetória com uma guinada brusca – não, ao menos, sem prejudicar aqueles que dele dependem financeiramente.

Gerações consecutivas inteiras de brasileiros viram no Estado a solução para seus problemas – não por preguiça, mas por força das circunstâncias. Se meu pai, após décadas de labuta como motorista de caminhão, ao observar-me com 18 anos, apenas um curso técnico nas mãos e muita dificuldade de trabalhar, aconselhou-me a prestar concurso para sargento da FAB, não foi por malandragem, mas sim porque, desde sempre, o setor privado está aos frangalhos – experimentando raros intervalos de crescimento artificial, que cobram a conta ali na frente. E qual pai, diante deste “dilema”, não vai preferir que o filho navegue por mares mais tranquilos que aqueles por ele enfrentados?

Posso garantir que muitas pessoas que passaram por ciclos semelhantes e hoje são funcionários públicos querem dar sua contribuição para que o país se livre da praga do esquerdismo – alguns, inclusive, já fizeram contato comigo, tanto para parabenizar-me como para indagar como poderiam ajudar. Bom, não vai ser pedindo demissão para lhes “aliviar a consciência”, isso é possível dizer com certeza – até porque, agindo desta forma, sobrariam apenas esquerdistas na administração pública. Aí veríamos o tamanho do estrago.

Mas é de se indagar: seriam estes funcionários públicos liberais “masoquistas”, autoflageladores? Estariam cavando a cova de suas categorias profissionais ao abraçarem este ideário? Sim e não. É provável e natural que, com o avanço do liberalismo econômico, mais dinheiro circule na iniciativa privada, em detrimento do setor público. Com isso, restará impossível manter a realidade atual, na qual a média salarial do primeiro anda bem mais baixa que a do segundo – para não mencionar uma extensa gama de privilégios adicionais.

Todavia, ninguém vive em uma bolha. A partir deste momento, será possível sonhar com menos desemprego, inflação e juros mais baixos, menos violência urbana; enfim, o mundo a nossa volta poderá estar muito melhor – tal qual sucedeu-se recentemente em países como Irlanda e Nova Zelândia, que investiram nesta fórmula. Pode ser que para aqueles que trabalham para o Estado melhore menos, mas para quem, em princípio, não está sujeito às oscilações do mercado, acho que não dá para reclamar.

Ou seja, este suposto temor de sofrer prejuízos no curto prazo é compensado (e muito) pela fé no avanço de todos os índices de desenvolvimento humano do país. Para melhor visualizar a cena, basta comparar a vida de um funcionário de alto escalão do governo venezuelano com as condições do mais subalterno dos funcionários de Nova York: quem será que está melhor na fita?

Ademais, os funcionários públicos de diversos estados e municípios do Brasil já aprenderam, da pior forma possível, que a crise econômica pode até demorar mais para bater sua porta, mas ela, fatalmente, acaba chegando e derrubando a casa – gaúchos, cariocas e mineiros que o digam. E para esta onda chegar à União Federal, pode até demorar mais (já que esta concentra 70% dos tributos arrecadados no país e, claro, pode imprimir dinheiro e contrair empréstimos com o setor privado), mas água mole em pedra dura…

Mas para quem ainda acredita que a resposta para o título deste artigo é não, faço outro questionamento: vão desprezar esta ajuda na busca por um Brasil menos focado no governo? Tudo bem então, mas vou precisar dizer que você, provavelmente, está mais preocupado em discursar bonito do que com os resultados efetivos advindos de sua ideologia. Sinto ter causado um bug em seu sistema operacional e não ter corroborado com sua ladainha de que “funcionário público é tudo corporativista de esquerda”.

Eu quero é ver João e Pedro felizes, pois da felicidade deles depende a minha também – somos todos parte de vários organismos vivos, os quais precisamos integrar durante nossas existências. Não há como o coração seguir batendo se o fígado fraquejar.  Não pense que não há, por motivos muito semelhantes, funcionários públicos americanos que apoiam o partido Republicano. E acho pouco provável que seu voto e suporte seja dispensado pelo GOP.

Antes de fazer este julgamento, sugiro, ainda, o seguinte exercício de imaginação: a sua frente está a família da qual você é arrimo, a sua direita um cargo público, e a esquerda o desemprego herdado da era lulopetista. Vai deixar sua família na pior para defender, com unhas e dentes, suas ideias? Até mesmo Friedrich Hayek trabalhou – e por muito tempo – para o setor público, conforme declara Nicholas Wapshott. Alguém aí pensando em rasgar sua cópia de “Caminho da Servidão”?

Ah, você ainda não trabalha nem tem família pra sustentar…então deixa pra lá.

Não sou maluco, nem metido a bonzinho, nem ingrato, nem incoerente. Só quero que o país melhore, ainda que melhore menos para funcionários públicos, e mais para o João e o Pedro. E sei que não posso fazer isso apenas com meu trabalho – ao menos, não de forma duradoura. E se algum libertário partidário da opinião de que mesmo este serviço deveria ser feito apenas por particulares – como já ocorre com empresas certificadoras de ISO, por exemplo – estiver lendo, eu espero que, se algum dia isso se tornar realidade, possamos trabalhar juntos, ajudando a promover uma vida mais digna a pessoas simples e humildes.

Ganhando dinheiro em troca, claro (bitcoin, possivelmente). Aliás, esta é uma boa ocasião para uma dica: parem de chamar seus empregados de colaboradores. É um eufemismo tão ridículo quanto chamar pagador de impostos de contribuinte. As pessoas trabalham em busca da subsistência e do devido reconhecimento, e colaboram voluntariamente com amigos e parentes, vez por outra. Colaborador sou eu agora, escrevendo isso tudo sem ganhar um tostão em troca. Mas ainda assim acho que vale a pena. Pela mesma lógica, Servidor público é patético também; é funcionário e pronto!

PS: a imensa maioria dos meus colegas é de esquerda, sim, e respeito muito seus posicionamentos e seu trabalho. Não é tarefa fácil desintoxicar-se do marxismo cultural, e atacá-los não resolverá o problema – até porque eles já estão sendo atacados até por um velho ídolo

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