Por Ricardo Bordin, publicado pelo Instituto Liberal
A corrente pausa em vigor no calendário do futebol brasileiro poderia servir para os amantes do esporte bretão refletirem a respeito de uma prática genuinamente brazuca, que não encontra eco em clubes europeus, e que retrata, em grande medida, nossa cultura de não individualização de responsabilidades: a malfadada “concentração” nas datas que antecedem jogos oficiais.
O procedimento de exigir que os atletas durmam na véspera e permaneçam as vinte e quatro horas que antecedem as partidas sob a supervisão da entidade esportiva seria justificado, em tese, pelo histórico de comportamento pouco profissional de nossos jogadores – incluindo no pacote bebida alcoólica, sono insuficiente e alimentação imprópria. Destarte, somente acorrentando-os ao pé da cama seria possível garantir que seu desempenho na partida venha a ser satisfatório – eis o receituário de “sucesso” de nossas agremiações.
Só faltou combinar com a realidade, uma vez que tal praxe administrativa dos clubes de futebol brasileiros não lhes garante um rendimento em campo melhor do que seus congêneres europeus – aliás, bem longe disso. No Velho Mundo, o expediente habitual consiste em determinar que os jogadores apresentem-se para os jogos tão somente algumas horas antes do apito inicial, permitindo que estes, entre a saída do último treino e o retorno para o estádio, façam o que bem entenderem de suas vidas, sendo-lhes cobrado, tão somente, que demonstrem durante os fatídicos noventa minutos que adotaram conduta condizente com sua profissão durante seu intervalo interjornada.
Ou seja, aos desportistas atuantes no continente europeu é conferida liberdade, sendo esperada, em retorno, responsabilidade – no sentido, inclusivo, de serem eles responsabilizados por seus atos, ficando sujeitos a pesadas sanções em caso de indisciplina que venha a repercutir dentro das quatro linhas ou que afete a imagem da instituição. Nossos clubes, a seu turno, preferem tratar seus jogadores como crianças imaturas que precisam de vigilância constante, sob o presumível risco de estes encherem a cara na balada e apresentarem-se sem condições para prática esportiva.
É claro que reproduzir esta rotina europeia no Brasil não seria tão fácil, visto que a Justiça do Trabalho costuma reverter suspensões de contrato (com desconto salarial) e demissões com justa causa com muita frequência. É recorrente atletas totalmente relapsos que são postos para treinar em separados obterem indenizações por “assédio moral” do empregador, inclusive. Coisas do nosso Judiciário e sua postura enviesada à esquerda.
Eis aí uma marcante coincidência deste hábito com a predileção de nosso povo pelo oneroso e paquidérmico Estado-babá, o qual, assim como a internação compulsória dos atletas supostamente irresponsáveis (até mesmo em extensos períodos de pré-temporada), também oferece, a preço de pesados tributos, uma aparente “proteção” a todos. E os custos de manter os boleiros longe dos suas casas e famílias não são baixos, e tal obrigação, normalmente, desagrada-os muito, afetando, visivelmente, suas performances.
Se tal costume fizesse mesmo sentido, seríamos obrigados a concluir, igualmente, que médicos deveriam ficar “concentrados” antes de uma cirurgia, da mesma forma que pilotos antes de um voo, ou parlamentares antes de uma votação importante. Haveria mais gente “concentrada” do que andando nas ruas, provavelmente.
Tal diferença na relação estabelecida entre contratantes e contratados cá e lá pode ser sentida quando da admissão de jogadores brasileiros em clubes europeus: estes, tão logo se dão conta da nova “política da empresa”, passam a portarem-se de forma muito mais séria e regrada – sendo, por isso, muito bem recompensados, inclusive com mais tempo de folga. E aqueles que assim não procedem costumam ser encaminhados de volta para a América do Sul – ou acabam indo parar no Catar ou em outros mercados incipientes do esporte.
Mas os clubes nacionais, como entes privados que são, não deveriam, a partir dos estímulos do próprio mercado em que estão inseridos, passar a agir feito seus concorrentes europeus, em busca de maior produtividade – leia-se: futebol mais vistoso e que atraia mais fãs para seu séquito de torcedores? Esta seria, pois, a atitude a ser esperada, não fosse o fato de que nossos times de futebol, assim como qualquer associação, não estão sujeitos à falência, conforme determina a Lei 11.101/05, art. 1º – inversamente ao que se observa na Europa, onde até mesmos clubes tradicionais, como a Fiorentina/Itália, já foram submetidos à execução concursal por parte de seus credores, e precisaram recomeçar do zero (da quarta divisão, no caso).
Aliás, este privilégio de não serem considerados pela legislação pátria como empresas é uma legítima jabuticaba usufruída por nossos clubes, pois até mesmos nossos vizinhos de continente permitem que seus times venham a falir – obrigando-os, de certa forma, a controlar seus gastos e a repensar seus métodos administrativos. Determinadas agremiações do Brasil ostentam dívidas superiores a meio bilhão, em meio a débitos fiscais e previdenciários, inclusive.
Qualquer empresário, em tal estado de insolvência, já teria tido sua falência decretada judicialmente, mas este tratamento diferenciado confere aos clubes um caráter de isenção ímpar, e que abre as portas para a irresponsabilidade financeira completa e para a aplicação de metodologias de eficiência duvidosa – sem que ninguém responda por tal, gerando insegurança jurídica àqueles que negociam com estas instituições e forçando o Estado, eventualmente a perdoar dívidas (renunciando impostos devidos). Tal síndrome costuma acometer, por sinal, muitos de nossos governadores, os quais, tão logo findo seus mandatos, “rapam fora” e deixam a bomba na mão de seus sucessores, os quais precisam dirigir-se a Brasília com o pires na mão, e ainda dão-se ao direito de apontar-lhes o dedo tecendo críticas – confere, Tarso Genro?
A esta altura, alguém pode estar conjecturando que os nababescos salários dos jogadores de futebol deveriam justificar tantas horas à disposição do empregador. Acontece que a contrapartida do atleta para com que lhe remunera independe do tempo que ele passa “concentrado” na sede do clube, mas sim do quanto ele consegue render em campo. Se o atacante vai marcar mais gols se não ficar confinado, tanto melhor, pois é desta forma que ele trará retorno financeiro e agregará valor à imagem e à marca do clube. Tal lógica é adotada por empresas que permitem que seus empregados até mesmo joguem videogame e durmam durante o expediente, pois consideram que assim eles produzirão mais.
É bom ressaltar, ainda, esta ascensão meteórica das remunerações pagas aos futebolistas nos últimos trinta anos. Sabem por que os clubes pagam tanto hoje até mesmo para atletas medianos? Porque podem pagar. Simples assim. A evolução dos meios de transmissão dos jogos e de transporte (que permitiram a popularização do esporte a nível planetário) fez aumentar em muito as premiações recebidas pelas agremiações; desta forma, o “leilão” pelos atletas eleva as ofertas a níveis outrora inimagináveis. E é assim, também, que os salários dos trabalhadores ordinários do Brasil poderão, um dia, subir: quando a carga tributária permitir que as empresas possam remunerar melhor seus empregados. Mais simples ainda.
Acostumar nossos atletas com a liberdade, exigindo destes, em retorno, a consciência em relação a seus deveres, é uma terapia a que precisa ser submetido boa parte do povo brasileiro, na verdade, e não é de uma hora para outra que este cenário irá mudar. Mas quanto antes começarmos, melhor. Um adolescente que aprende a administrar sua mesada desde cedo tende a tornar-se um adulto mais consciente, mas é claro que, no começo, ele vai gastar tudo no primeiro dia, e somente a persistência dos pais em incutir-lhe o comprometimento em gerir com juízo aquele dinheiro surtirá efeitos positivos em seu amadurecimento.
No mesmo sentido, como são profissionais que atingem seu auge quando ainda muito jovens, os jogadores de futebol precisam aprender logo cedo a ter responsabilidade e passar confiança ao time e ao treinador. E os clubes, ao invés de trancafiá-los como crianças, deveriam investir em sua formação não apenas como jogadores, mas como homens e cidadãos que são.
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