Em entrevista ao Estadão, o ministro Gilmar Mendes, que acabou de ser responsável por uma das chicanas mais bizarras do Supremo Tribunal Federal, disse que o cemitério está cheio de “falsos heróis” e comparou o ministro Sergio Moro a dois conhecidos procuradores esquerdistas, que adotavam claramente uma visão politizada e ideológica em suas funções, perseguindo adversários:
Moro é tratado como herói por parte dos brasileiros, assim como procuradores da força-tarefa da Lava Jato. Isso abre margem para excessos?
Se eu fosse listar todos esses episódios, teríamos vários desses personagens que já não são mais lembrados, como o procurador Luiz Francisco, o delegado Protógenes (Queiroz), que a mídia em algum momento transformou em herói e, quando se revela a sua inconsistência, a mídia lhes dá um enterro silencioso. Se a mídia já tivesse feito um exame, talvez a gente não tivesse de conviver com esses falsos heróis da atualidade. Em geral, não têm vida longa. O cemitério está cheio desses falsos heróis.
Sérgio Moro está na sua lista de falsos heróis?
Eu não coloquei. O que eu acho é que faz parte do nosso processo civilizatório, nós temos de encerrar esse ciclo de ficar na busca de heróis. Eles são apresentados por vocês (mídia) como tal e eles passam a acreditar nisso. Depois, coitados, passam a ter um grande problema de depressão, obviamente antes de desaparecerem por completo.
A comparação é descabida, esdrúxula até. Vamos lá: em tese, Gilmar Mendes até teria um ponto. O brasileiro gosta mesmo de buscar heróis messiânicos, que seriam capazes de consertar tudo num passe de mágica.
Mas Moro não entra nesse rol, que já contou com figuras políticas como Getulio Vargas e o próprio Lula. Moro era um juiz fazendo um trabalho sério e com coragem, que resultou na maior operação de combate ao crime no país, prendendo mais de uma centena de corruptos do alto escalão e devolvendo bilhões desviados aos cofres públicos.
Não foi a mídia que “fez” o Moro herói; foi o próprio povo, que alimentou pela primeira vez a esperança no fim da impunidade para os poderosos. Antes figuras como Lula e Odebrecht simplesmente não iam presas. O Brasil mudou com a Lava Jato, isso é inegável.
O fato é que existem heróis de verdade, gente que faz a diferença para o bem, que vai para o sacrifício pessoal, assume riscos, enfrenta o perigo para fazer a coisa certa. Moro entrou nessa categoria, e talvez isso incomode Gilmar Mendes porque ele está certamente no lado oposto, aquele dos vilões que protegem os poderosos. O ministro é recordista em aprovar habeas corpus e soltar bandido influente. Se dependesse dele, e não de Moro, quantos da quadrilha liderada pelo PT estariam presos?
Gilmar Mendes é o “garantista” mais excêntrico que existe. Ele é ultralegalista, a ponto de parecer o Shylock de O mercador de Veneza, que vai na letra da lei para fazer “justiça”, mas quando lhe interessa ele é o primeiro a apelar para um “twist carpado triplo” para rasgar a própria Constituição que deveria defender. Um conhecido meu que é juiz federal, conversando em off, desabafou:
Meu caro, tem horas que eu acabo me descobrindo meio saudosista do tempo em que eu conseguia entender e explicar as decisões do Supremo, mesmo quando não concordava. De uns tempos pra cá, anda impossível (espero, sinceramente, que por limitações técnicas minhas, mas creio que não seja assim). Então eu entendo bem o lado “Thomas Paine” das pessoas quanto ao STF. Entender o porquê da sugestão de liminar dada pelo Gilmar Mendes quando ele tinha o voto do mérito pronto nas mãos (44 laudas, parece que ele disse), é difícil (ao menos do ponto de vista jurídico; do político, eu entendo perfeitamente). Fico me imaginando em uma audiência dizendo pras partes: olha, eu já analisei tudo e estou com a sentença de vcs prontinha aqui, mas vai demorar muito pra ler hoje. Então vou dar uma decisão provisória aqui e, daqui a 2 meses, a gente marca outra audiência pra eu ler a sentença e resolver a questão. Foi isso o que o Gilmar fez ontem. Fica a impressão que a ideia era “sondar o ambiente”. Se colasse, ótimo. Se perdesse, segurava o processo até ter outra coisa contra o Moro pra levar. Infelizmente, não vejo outra leitura… Tecnicamente, ao menos, não tem. Até conversei com uns colegas pra ver se alguém tinha uma explicação técnica pro que ele fez, mas ninguém entendeu… O Celso de Mello e a Carmem Lúcia tentaram contemporizar, dizer que não falavam sobre o mérito, mas é impossível! Se o juiz é suspeito, o processo é anulado e voltaria pro início. Não teria como o Lula ficar preso. Se não é, vc não daria tal liminar pq a demora no julgamento de um recurso em tribunal superior não a justifica (pois ele está preso pq a sentença já foi confirmada em segunda instância, e não por prisão cautelar). A única explicação é que o Gilmar queria sondar o ambiente para só votar o Hc se tivesse maioria pra soltar o Lula. Infelizmente é o que parece.
Eu sou leigo no assunto, mas vários especialistas disseram o mesmo: a decisão de Gilmar Mendes foi totalmente descabida. E é esse ministro que quer dar lição de moral de que o combate ao crime deve ser feito estritamente dentro da lei?
Em sua coluna de hoje no Estadão, William Waack comenta sobre o receio dos protagonistas da Lava Jato com as reações que viriam, inclusive e principalmente do próprio STF:
A rigor, o que se publicou até agora de conversas hackeadas de expoentes da Lava Jato confirma o que já se sabia. As figuras principais da Lava Jato percebiam como hostil à operação parte das instituições, incluindo o Supremo. Entendem decisões no STF como resultado de intrincadas lealdades políticas e pessoais por parte dos ministros – ou mesmo inconfessáveis. Portanto, raramente de natureza “técnica”.
O material publicado até aqui sugere que Sérgio Moro e Deltan Dallagnol tinham clara noção de que seu entrosamento, coordenação e atuação eram passíveis de forte contestação “técnica” pela defesa dos acusados e, como se verá, pelo STF. Esse mesmo material hackeado deixa claro, porém, que a preocupação maior deles ia muito além da batalha jurídico-legal.
Consideravam-se participantes de um confronto político de proporções inéditas no qual o adversário – a classe política em geral e o PT em particular – comandava instrumentos poderosos para se proteger, entrincheirado em dispositivos legais (garantidos na Constituição) que os dirigentes da Lava Jato e boa parte da população viam como privilégios.
[…]
Arguir a suspeição de Moro e, por consequência, a “moralidade” da conduta da figura central da Lava Jato soa correto para quem pretende que o respeito à norma e à letra da lei é que garante o funcionamento da “boa” política e das instituições. A esta visão, a do “idealismo” da norma legal, se opõe a visão do realismo da ação que busca derrotar o adversário político corrupto tido como imbatível. É a visão da Lava Jato, narrativa hoje sustentada por substancial maioria da população.
[…]
O resultado imediato dessa batalha é conhecido: desarticulou-se um fenomenal império de corrupção e foram expostos o cinismo, a mentira e a imoralidade de seus participantes. As enormes consequências econômicas, políticas e sociais estão apenas no início. Mas também a Lava Jato não parece ser a vitória do “bem” contra o “mal”, como pretendem alguns de seus defensores pouco críticos. Ao se lançar na luta política ela foi apanhada pelo mesmo caos político-institucional que ajudou a produzir, mesmo não tendo sido esse o objetivo.
O material hackeado não sugere que os expoentes da operação tivessem intencionalmente se empenhado em destruir o edifício do estado de direito. Na verdade, os dirigentes da Lava Jato se sentiam operando em terra já arrasada. Em cima dela a sociedade brasileira terá de encontrar um novo caminho, por enquanto indefinido. Difícil é imaginar um “retorno” ao que não existia: instituições funcionando dentro do devido marco legal.
Concordo com o experiente jornalista. Não há razão para se adotar uma visão binária e maniqueísta, uma narrativa quase infantil de luta do bem contra o mal, em que os heróis são perfeitos e podem tudo e os vilões são caricaturas dos filmes do 007. A realidade é diferente, mais complexa, com mais cinza.
Dito isso, parece inegável que vários ministros do STF têm agido para manter o status quo da impunidade, ainda que sob o manto do legalismo (manto esgarçado pelas traças da seletividade), enquanto a Força-Tarefa da Lava Jato fez um excelente trabalho de combate ao crime. Nesse contexto, parece justificável a maioria da população escolher Moro como herói, e Gilmar Mendes como vilão. Pode ser simplista, mas se não é exatamente a verdade, chega bem perto disso…
Rodrigo Constantino
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