Por Hiago Rebello, publicado pelo Instituto Liberal
Heresia tem sua origem, no grego, do termo “escolher”. O herege é aquele que escolhe, malgrado a Verdade que o cerca. A heresia é a reta fora do caminho, a doxa em contrário a episteme, a ciência; o herege (e sendo claro: se atendo apenas ao significado primário da palavra) é por essência um sujeito plural. Não há nada que o norteie – nada fixo, ao menos.
A heresia é escrava da vontade, mas também escrava do subjetivo, escrava do grupo, da comunidade. Ela consegue ser suficientemente elástica para servir ao indivíduo e ao coletivo em sua fuga da Verdade. A marca de toda e qualquer heresia é o desvio, a escolha pelo que não é certo, não importando se essa anormalidade é em nome de um ou de muitos, de uma ideia paralela e comum ou de algo original.
O herege é aquele que é diverso. Ele diversifica a reta via para, enfim, adequá-la aos seus desejos e vontades, suas interpretações e crenças. Ele acredita que, por conta própria, pode desenvolver algo tão bom quanto aquilo que é naturalmente certo, ele crê fielmente que pode erguer uma catedral apenas com a areia e água vindas da praia e que estas podem ser tão boas ou até melhores do que a pedra sólida.
Mas algo que todo herege segue, à risca, é seu heresiarca. O heresiarca é tão plural quanto qualquer falsidade que leva à heresia. Ele pode ser uma pessoa, um líder, que se torna inquestionável para um grupo qualquer; é também o próprio sujeito que acredita ser, ele mesmo, o guia-mor de sua vida e da Verdade, o juiz supremo da Realidade; o heresiarca pode ser um amontoado de gente, o coletivo social que cria convenções para sua vivência – porém, de qualquer modo, algo é constante: os heresiarcas mandam com mãos de ferro na vida dos hereges.
Mas as coisas não são fáceis de serem identificadas assim. O heresiarca, antes de mais nada, se vê e se promove como um ortodoxo, um patriarca, como aquele que tem, de algum modo, uma guia para a via reta – ainda que essa linha dite que, afinal, todas as outras vias são corretas, ou mesmo que não existe caminho correto a se seguir, ela não pode fugir da realidade: o eu.
Qualquer um que desvie do caminho só o faz porque algo em seu indivíduo assim o inclinou: essa pessoa, sem sombras de dúvidas, deve reconhecer que sua vontade faz com o que suas escolhas sejam as corretas, independente do mundo que a cerca, das regras da existência que a regem.
Na literatura há Melkor (ou Morgoth), um personagem criado por J.RR. Tolkien. Melkor é o principal vilão da História da Terra Média. Ele desobedece ao Deus Criador, pervertendo seus moldes e vontades para a criação do Mundo apenas porque acreditava que “de seu jeito” era o melhor; mas a forma com que escolheu deformar a criação segundo sua vontade e opinião foi justamente a entrada do mal no mundo. Se, em O Senhor dos Anéis, vemos Orcs, Goblins, Trolls e os mais variados monstros, é por causa do desejo de Melkor. Havia o caminho certo para se criar o Mundo, seguindo um plano cósmico para a vida que existiria e tudo o mais. Sendo o correto, qualquer desvio desse arranjo divino causaria atritos, disparidades e confusão. Todavia, Melkor não pensou minimamente no assunto: todo o mar de sangue das guerras e dos massacres perpetrados por suas criaturas seguiam sua vontade e sua vingança, pois este demônio não se conformara ao ser impedido de criar a seu bel prazer.
Melkor tentou ser Deus. Outro ser, que, diga-se, foi fonte de inspiração para a criação de Melkor, também não se conformou com os mandos do Criador, com as definições acima de sua cabeça: Lúcifer. Como sua “correlação” tolkieriana, o Anjo Caído da Bíblia desobedeceu à ordem das coisas. Não só se corrompeu como também tombou o Homem, seduzindo Eva para que a humanidade fosse como “os deuses”, ao comer do fruto da “ciência”.
Seja na religião, ou ainda na literatura influenciada e que viu a mesma coisa revelada pela religião, é certo que o Homem se comporta como um herege. Compreendemos a existência de uma Verdade, de um Bem acima de nós mesmos, porém não conseguimos alcançá-los com perfeição. Mesmo nossos padrões e convenções cultuais e sociais nos inibem de chegar a essa ortodoxia plena, em uma unidade que consiste nessa reta via.
E como todo indivíduo tem a responsabilidade-mor sobre a maioria de suas ações, podendo, diversas vezes, preferir o Verdadeiro ao mentiroso, a Justiça à injustiça, etc., não nos distanciamos muito de seres como Melkor ou Lúcifer. É claro que ambos não são humanos, porém há algo nessas duas criaturas que, analogamente, demonstra nossa responsabilidade pelo mal no mundo. Todos nós somos heresiarcas. Não apenas seguimos nossas embriagadas e cegas heresias, mas também as criamos e as lideramos no seio de nossas vidas pessoais e em nossa sociedade.
Faz parte do drama de todo Homem encarar-se no espelho e meditar: certo ou errado? Belo ou feio? Justo ou injusto? Verdade ou mentira? Para nos aproximarmos da ortodoxia, contudo, devemos nos perguntar: como trilhar essa via mestra? Como não cair na maldade, covardia e displicência? Essas questões são, em parte, misteriosas. A religião possui seus mistérios, suas perguntas altas demais e sem respostas, sua mística, porém toda a vida humana também se vê banhada pelo mistério. Como sabemos se, por exemplo, nossa cultura não está, na realidade, ditando as concepções de certo e errado? Como sabemos se tudo em que cremos não passa de uma artificialidade cultural, forjada nas forjas e fornos dos séculos e milênios, tão velha que é imemorial?
Entretanto, ao mesmo tempo, como sabemos que existe algo para além da cultura, além de nós mesmos? Regras, valores, enfim, dogmas que não devem ser quebrados, como a regra de nunca assassinar alguém. Decerto que existiram tempos e povos onde o assassinato era compreensível e até mesmo louvado, contudo, basta utilizar a racionalidade para ver o quão precária e irrisória é a defesa do assassinato, como ato cultural – mas ainda assim, flutuamos na incerteza. Não é necessária uma reflexão antropológica profunda para verificar isso. Dúvidas a respeito de como agir em tal ou qual situação nos abluem com frequência. “Isso é certo?”, todos nós já nos indagamos, desnudando as camadas criadas por nossos cotidianos e vontades.
Heresiarcas que somos, ainda assim a Verdade nos martela e clamamos pela ortodoxia em nossas vidas – e essa contradição é insolúvel, se quisermos solucioná-la totalmente.
-
PEC da Anistia dá margem para pagamento de multas por caixa-dois de partidos com dinheiro público
-
Trunfo de Milei, erro de Lula: a Argentina arruma a casa e o Brasil, não
-
As novas gafes de Biden e Kamala Harris “no aquecimento”; ouça o podcast
-
Governo diz que proposta do PL para isentar carne de imposto foi “vitória de Lula”
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS