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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

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Ao fechar a última página do último volume da coleção História dos Fundadores do Império do Brasil, do historiador Otávio Tarquínio de Sousa (1889-1959), só consigo pensar que uma das decisões mais felizes que tomei foi adquirir a coleção completa na Livraria do Senado. Não se poderia esperar menos que uma obra-prima de uma série de livros elogiada na contracapa por figuras do naipe de Carlos Lacerda e Carlos Drummond de Andrade.

Não é só pela absoluta importância das informações que condensa, pelo retrato que oferece da narrativa fundante da nossa pátria. Não é só pelo caráter de completude com que nos brinda com a biografia de alguns dos estadistas mais importantes da História brasileira. O grande motivo para se afirmar isso é que, para a minha sensibilidade de leitor, os livros são estupendamente bem escritos. Para quem, como este que vos escreve, acredita que nos falta a recuperação dos nossos grandes nomes e um encontro mais respeitoso com nosso passado, essa série de oito livros – ao menos no formato da edição que hoje se encontra à venda – é um tesouro imprescindível.

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Tarquínio conta a vida de cinco dos maiores nomes do nosso Império, que construíram o Estado nacional, arquitetando sua narrativa fundante. Honesto em seu texto, ele destrincha a personalidade, a alma de cada figura, valorizando o homem, seus valores e ideias por trás da História, muito mais do que meramente os supostos fatores econômicos e estruturantes.

Os sete livros da coleção

Atravessando os desafios das modificações do tempo e a falta de maturidade liberal-democrática na experiência brasileira sob o regime da monarquia tradicional portuguesa, as páginas dos livros nos mostram a grandeza dos homens de gênio que trabalharam, como peças em uma grande engrenagem, para construir um país e englobá-lo em um projeto. De forma compreensível diante das diferentes gerações a que pertenciam e dos imperativos da imperfeição humana, mostram-nos também brigando uns contra os outros, duelando passionalmente por razões que por vezes se nos afiguram pueris, agarrando-se tenazmente a superficialidades e tolices.O período abrangido pelos sete volumes, mostrado sob as diferentes perspectivas dos biografados, vai das movimentações da Família Real e das Cortes portuguesas entre a fuga de Portugal e a chegada ao nosso país em 1808 e a Revolução Liberal de 1820, passando pela independência efetiva em 1822, até a Revolução Liberal de 1842 e a posterior consolidação do sistema político do Segundo Reinado, que, sob Dom Pedro II, garantiu por várias décadas a estabilidade do país. A aventura histórica perpassa, nesse meio, todos os fatos mais relevantes, como as garrafadas entre lusitanos e nativistas, o 7 de abril de 1831, o Ato Adicional de 1834, o “regresso”, a Lei Interpretativa e a convulsão regencial, mostrando como o Brasil conseguiu sobreviver às mais flagrantes ameaças de dissolução e fragmentação.

Gigantes que às vezes eram pequenos, porém, nunca pequenos que às vezes eram gigantes; cada biografia nos mostra que a elite que, em um processo contínuo de conflitos e elaborações, constrói e atravessa as torrentes do tempo para levar o Brasil como pátria da Independência até o Segundo Reinado, não deixava a dever em quase nada aos pais fundadores de outras pátrias mundo afora. Podemos enxergar neles, nos seus defeitos e passionalidades, um pouco dos defeitos que carregamos na alma nacional, embora também o valor positivo da afetuosidade que nos caracteriza. Sobretudo, porém, Tarquínio nos dá o testemunho de passos que iniciaram o Brasil como ideia, e aos quais, em alguma medida, nos cabe hoje urgentemente revisitar.

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Muitíssimos nomes importantes do período monárquico, de Cairu a Olinda, de Barbacena a Paraná, de Gonçalves Ledo a Teófilo Otoni, de Uruguai a Araújo Lima, aparecem nas páginas dos livros e revelam suas qualidades e fragilidades. Porém, são cinco os biografados em destaque: José Bonifácio, Dom Pedro I (em três volumes), Bernardo Pereira de Vasconcelos, Evaristo da Veiga e Diogo Feijó. Sobram razões para entender a lógica de Tarquínio: é possível enxergar esses cinco como colunas-mestras do processo de edificação pátria.

 

José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) é, para Tarquínio – e, pessoalmente, concordamos -, o maior entre eles; desde o momento em que, movido por ideias de vocação iluminista e liberal, mas ao mesmo tempo pelo mais cauteloso e prudente realismo político, o nosso autêntico pai fundador estimula a resistência às limitações que as Cortes lusas desejam impor e enseja a Independência, quando todos estão preocupados meramente com a saída política e institucional, Bonifácio já esboça um amplíssimo projeto social para o Brasil. O experiente mineralogista já antevia a civilização miscigenada, com a abolição da terrível mancha da escravidão negreira; idealizava em nossas terras uma Atenas dos trópicos. No esquema histórico, era o berço, e mais amplo, do projeto nacional. Critica Tarquínio em Bonifácio, para não deixar de ser justo e exibi-lo em sua humanidade – uma humanidade, aliás, bem brasileira – a falta de serenidade, às vezes a intransigência, e as consequências eventualmente autoritárias disso; mas ressalta que seus benefícios ao país que fundou foram largamente superiores a essas vacilações.

 

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Dom Pedro I (1798-1834) é apresentado – na verdade, tal como Bonifácio, mas aparentemente ainda mais – em sua constante inquietação sexual, mulherengo por vezes desavergonhado de expor amantes em público para constrangimento da esposa. Os erros e as concessões às intrigas que, somados à sua origem portuguesa contra a qual se indispunham certos sentimentos nativistas mais aflorados, custaram-lhe a longevidade do trono, também não deixam de ser apresentados. Ao mesmo tempo, porém, Tarquínio faz justiça ao voluntarioso monarca: se seu temperamento prejudicou sua relação com a tentativa de construir um governo constitucional e temperado pela representação eleitoral, por outro lado, era ele, mesmo aos olhos do Velho Mundo, um campeão de fé do constitucionalismo; prova disso é que, após abdicar do trono brasileiro, lutou até o fim em Portugal contra o absolutismo de seu irmão, pelo trono liberal de sua filha. Se Bonifácio é o pai fundador, Dom Pedro é o coração da Independência, servindo como o símbolo que congraçou as províncias, mantendo a América portuguesa unida e temperada, bem ou mal, pela moderação da Monarquia, em vez de fracionada nas Repúblicas caóticas da América hispânica. Fê-lo por vontade própria; escolheu ficar entre nós e adotou o Império, e a sinceridade e importância desse sentimento jamais poderiam ser negadas.

Evaristo da Veiga

Evaristo Ferreira da Veiga (1799-1837) marca nova geração, aquela que assume o protagonismo após o adeus de Dom Pedro I no 7 de abril; a geração dos “liberais moderados”, aqueles que combateram dura peleja entre os “restauradores” ou “caramurus”, que clamavam pelo retorno do monarca em luta em Portugal, e os “exaltados” e “republicanos”, que avançavam até os devaneios rousseaunianos ou mesmo à imitação dos vizinhos com o ideário republicano. Desejosos da monarquia constitucional, os “moderados” atravessaram a Regência e foram os grandes responsáveis pela manutenção da unidade nacional, pela realização de avanços institucionais e a consolidação da elite política do Segundo Reinado. Jornalista da Aurora Fluminense, Veiga era uma referência para eles. Autor do Hino da Independência, pautava-se sempre pela moderação; tanto que fez da temperança sua marca quando engalfinhavam-se as tensões de um país em fabricação. Era a cabeça centrada, concorrendo como ninguém para a consolidação da opinião liberal no país.

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Bernardo Pereira de Vasconcelos

Bernardo Pereira de Vasconcelos (1795-1850), de outro lado, era também um “liberal moderado”; sob alguns aspectos, embora estivesse sempre afetado pela enfermidade, se poderia dizer que era o Carlos Lacerda da monarquia, tamanho o caráter insaciável e inflamável de suas investidas, de um vigor que não o abandonava. Descrito como estadista brilhante e orador assombroso, a enorme importância de Vasconcelos foi configurar no Brasil o regime da força de opinião, abrindo caminho para o fortalecimento do Legislativo e das oposições e a aproximação a um regime à inglesa. Era profundamente realista e foi ele o ícone do “regresso”, movimento que daria origem ao partido Conservador (ou Saquarema) no Segundo Reinado, motivado pela convicção de que o Ato Adicional de 34 e a efervescência federalista dos liberais levaram a confusões que precisavam ser contidas por alguma dose de ordem e centralização. Nesse realismo, que em certos aspectos nos parece acertado, em algumas questões ia longe demais, associando-se à grande lavoura em defesa da escravidão. Um triste aspecto que não compartilha com nenhum dos outros biografados.

Diogo Feijó

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Impossível alongar-me mais nessa síntese; friso apenas: leiam. Dediquem algum tempo a conhecer esses livros maravilhosos. O Brasil merece e os brasileiros precisam que páginas como essas promovam seu encontro com o próprio eu e com as suas aspirações históricas por liberdade e valor, abaladas pelas opções medíocres que fizemos ao perder o norte que nos devia guiar.Convictamente abolicionista era, de outro lado, o último dos cinco biografados, o padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843), amigo de Veiga, inimigo de Bonifácio, aliado e depois inimigo encarniçado de Vasconcelos. Padre que pugnava pelo fim do celibato clerical, Feijó era também teimoso e intransigente, mas ao mesmo tempo tudo isso evocava sua defesa sincera de suas ideias – por vezes ao ponto do excesso do puro idealismo. Também demonstrou capacidade de reconhecer erros e ausência de certa dose de arrogância que se esperaria em um homem que ocupou as posições mais importantes do poder. Ministro da Justiça e chefe maior do país na Regência Una, Feijó também atuou como representante paulista junto às malfadadas Cortes portuguesas e terminou seus dias após lutar na Revolução de 1842 contra o “regresso” de Vasconcelos e sua turma. Era, porém, curiosamente autoritário na prática de governo e avesso ao regime parlamentar, ao “governo das maiorias”, que julgava inconstitucional e anárquico – um retrato da pluralidade dos liberalismossui generis que encontrávamos naquele século XIX. Após a abdicação, porém, devemos a esse personagem que atravessou ativo toda aquela fase pátria a determinação para proteger o país das convulsões dos que desejavam soluções extremas.