Alguns brasileiros desejavam comemorar ontem o impeachment de Dilma. É compreensível: ninguém aguentava mais o PT no poder. Mas da forma que foi feito no Senado ficou inviável celebrar. Restou o gosto amargo na boca, de quem vence, mas não leva. De quem ganhou um prêmio importante, mas sob um custo muito alto. Uma vitória de Pirro, enfim.
Falo, claro, do golpe que o próprio Senado deu na Constituição, com a articulação de seu presidente com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski. É algo da maior seriedade, que não pode ser simplesmente ignorado, que vai voltar para nos assombrar por muitos anos. É a prova de que não somos um país sério, de que somos, na verdade, uma piada!
Fatiar a votação, para isolar um destaque constitucional, que foi derrubado por minoria simples, é algo totalmente absurdo, sem precedentes, golpe! Eis como ficou o trecho da Constituição, na prática, após a decisão desta quarta-feira:
O arbítrio é a marca registrada de uma República das Bananas. Ao resenhar o livro do historiador Marco Antonio Villa sobre nossas constituições, destaquei exatamente essa característica, típica de países atrasados. Ou seja, o descaso pela Carta Magna não vem de hoje, mas nunca antes na história deste país vimos algo tão descarado. Leandro Ruschel resumiu bem a coisa:
Renan Calheiros, o sujeito que tinha amante paga com dinheiro de construtoras bandidas, em conluio com Lewandowski, o amigo da família Lula em São Bernardo, o juiz do STF que tem uma certa predileção pelos bandidos do PCC, produziu ontem um golpe, rasgando mais uma vez a Constituição Federal.
Como, então, comemorar qualquer coisa? Seria coisa, lamento, de otário, de quem enxerga o imediato, mas ignora o profundo. Algo bem brasileiro, convenhamos. Fico com o editorial da Gazeta do Povo, jornal que tem feito um ótimo trabalho na defesa dos valores relevantes para uma nação que se pretende civilizada:
Confirmada a cassação de Dilma na votação do impeachment, o presidente do Senado, o peemedebista Renan Calheiros, abandonou todo e qualquer pudor, pronunciando-se publicamente contra a suspensão dos direitos políticos da presidente cassada. Naquele momento, esvaiu-se qualquer dúvida que alguém ainda pudesse ter sobre a participação dos senadores do PMDB na combinação espúria que levaria ao resultado observado minutos depois: a maioria do Senado até continuou contra Dilma, mas os 42 votos não foram suficientes para ratificar a pena de oito anos de inabilitação, pois era necessária a mesma maioria de dois terços exigida para o impeachment, ou seja, 54 votos.
Na mesma sessão que deveria consagrar uma vitória da moralidade e da democracia, rasgou-se a Constituição em nome da impunidade. […]
Mas é óbvio que Calheiros e seus asseclas não estavam pensando em Dilma, contra quem não há – pelo menos por enquanto – acusações de crime comum. Violaram a Constituição pensando em si mesmos, pois, com a Operação Lava Jato em seus calcanhares, correm o risco de também eles perderem seus mandatos. O golpe promovido na tarde desta quarta-feira lhes dá a chance de sair com um prêmio de consolação: a preservação de seus direitos políticos. Uma decisão que beneficia inclusive o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, tão criticado em público por Dilma e seu advogado, José Eduardo Cardozo, nestes dias finais do impeachment. Apesar do palavrório dilmista, quem há de garantir que o próprio Cunha não tenha participado da trama urdida por petistas e peemedebistas?
Senadores do PSDB e Democratas chegaram a anunciar a intenção de recorrer ao STF contra a decisão, mas recuaram – atitude questionável, pois é preciso que a corte seja provocada para que possa restabelecer a punição prevista pela lei maior do país. A decisão de quarta-feira é claramente inconstitucional e consagra a impunidade – tudo de que o país não precisa neste momento.
Os senadores ficaram com receio de, recorrendo ao STF, melar o julgamento todo como improcedente. Tática, inclusive, que o próprio PT poderá usar. Eis um dos riscos imediatos da gambiarra cometida ontem. Que foi tema de bom artigo de Reinaldo Azevedo também:
Vamos ver. O Parágrafo Único do Artigo 52 da Carta é claro, sem espaço para ambiguidade: o Senado vota o impedimento da presidente, COM A INABILITAÇÃO para o exercício de cargos público. Não obstante, o que fez o presidente do Supremo?
Ignorou o texto constitucional, alegando que seguia o Artigo 312 do Regimento Interno do Senado, que obriga a Casa a aceitar destaques de bancada. ATENÇÃO PARA O TRIPLO SALTO CARPADO LEGAL DADO POR LEWANDOWSKI: ELE ACEITOU O FATIAMENTO DA CONSTITUIÇÃO. Entenderam? Lewandowski permitiu que parte dos senadores considerasse sem efeito um trecho da Carta Magna. É uma aberração.
Pergunta óbvia: era essa a matéria que estava em votação? É evidente que a Constituição foi fraudada. […] Renan e Lewandowski atuaram de modo a criar uma espécie de fato consumado, ainda que jogando a Constituição da lata do lixo.
[…]
E é bom que se fique atento. Quem é capaz de proceder desse modo pode tentar aventuras maiores. Cumpre lembrar que, numa das intervenções que o Supremo fez no processo de impeachment, Lewandowski sugeriu que entendia que o Senado não era soberano para decidir — ou por outra: que a palavra final haveria de caber mesmo ao Supremo. Não sei quais outras feitiçarias pode ter em mente quem não consegue falar nem “perda do cargo”, preferindo dizer “quesito”.
A propósito: uma das funções do Supremo é zelar justamente pelo cumprimento da Constituição. Não consta que qualquer um de seus membros tenha licença fraudá-la.
Ah, sim: Celso de Mello, decano do tribunal, disse o óbvio: a perda do mandato supõe a inabilitação. Ainda que o julgamento de Fernando Collor, como já expliquei aqui, tenha aberto o precedente, duas aberrações não criam o estado da arte do direito.
Como se nota, o petralhismo foi apeado do poder, mas não está morto.
Não. Está vivo e atuante. O PT pode estar acuado, fora do poder, escondendo a estrela vermelha da infâmia de suas campanhas. Mas o petismo está vivo. Os petistas estão por todo lugar, em várias instituições, e em outros partidos, como o PSOL, a Rede e o PCdoB. São como uma praga resistente. E, como está claro, houve golpe sim. Justamente deles. Rasgaram a Constituição na cara de todos. E muitos só pensavam em festejar. Brasileiro é otário?
Rodrigo Constantino
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