Um Big Brother nos vigiando, ou a perda da liberdade em ambiente de completa libertinagem e avanço tecnológico? Um caso remete à distopia de George Orwell, o outro à de Aldous Huxley. E o debate sobre qual deles antecipou com maior precisão profética os tempos modernos continua.
Particularmente, creio que há um misto dos dois, mas o pêndulo se inclina mais para o lado de Huxley mesmo. Até porque Orwell descreveu o stalinismo, enquanto Huxley vislumbrou um futuro que não existia em seu presente, e acabou realmente acontecendo.
Logo, Huxley seria o grande profeta. É o que sustenta Helio Gurowitz em sua coluna na Época. Em que pesem seus ataques a Trump*, que seria o ícone da “pós-verdade” (eu poderia jurar que este troféu já fosse de Barack Hussein Obama!), o texto é bom e merece reflexão. Eis um trecho:
No futuro pintado por Huxley, a sociedade está dividida em castas. Crianças projetadas geneticamente saem de fábricas de bebês e são condicionadas a exercer das funções mais nobres às mais abjetas. Não há mães, pais ou casamentos. O sexo é livre. A diversão está disponível na forma de jogos esportivos, cinema multissensorial e de uma droga que garante o bem-estar sem efeito colateral: o soma. Restaram na Terra dez áreas civilizadas e uns poucos territórios selvagens, onde grupos nativos ainda preservam costumes e tradições primitivos, como família ou religião. “O mundo agora é estável”, diz um líder civilizado. “As pessoas são felizes, têm o que desejam e nunca desejam o que não podem ter. Sentem-se bem, estão em segurança; nunca adoecem; não têm medo da morte; vivem na ditosa ignorância da paixão e da velhice; não se acham sobrecarregadas de pais e mães; não têm esposas, nem filhos, nem amantes por quem possam sofrer emoções violentas; são condicionadas de tal modo que praticamente não podem deixar de se portar como devem. E se, por acaso, alguma coisa andar mal, há o soma.”
[…]
No universo de Orwell, a população é controlada pela dor. No de Huxley, pelo prazer. “Orwell temia que nossa ruína seria causada pelo que odiamos. Huxley, pelo que amamos”, escreve Postman. Só precisa haver censura, diz ele, se os tiranos acreditam que o público sabe a diferença entre discurso sério e entretenimento. “Quão maravilhados ficariam todos os reis, czares, führers do passado (e comissários do presente) em saber que a censura não é uma necessidade quando todo o discurso político assume a forma de diversão.” O alvo de Postman, em seu tempo, era a televisão, que ele julgava ter imposto uma cultura fragmentada e superficial, incapaz de manter com a verdade a relação reflexiva e racional da palavra impressa. O computador só engatinhava, e Postman mal poderia prever como celulares, tablets e redes sociais se tornariam – bem mais que a TV – o soma contemporâneo. Mas suas palavras foram prescientes: “O que afligia a população em Admirável mundo novo não é que estivessem rindo em vez de pensar, mas que não sabiam do que estavam rindo, nem que tinham parado de pensar”.
Eu já tratei desse tema aqui e aqui, mostrando como a busca pela “felicidade perpétua” poderá nos destruir por completo, transformando-nos em escravos, reféns das paixões e dos oportunistas de plantão. Cito inclusive o mesmo trecho mencionado por Gurowitz. E fecho um deles com o denominador comum entre Huxley e Orwell:
O “selvagem” de Huxley, não custa lembrar, tinha lido várias obras de Shakespeare, e foi isso que manteve nele um antídoto contra o “racionalismo” pseudo-científico de Mustapha Mond, um dos controladores do “admirável mundo novo”. Já em 1984, o herói Winston acorda um dia com uma única palavra em sua mente: Shakespeare.
Coincidência? Ou será que ambos os autores foram capazes de compreender a importância do passado, da cultura, da literatura, das emoções, do aprendizado acerca da natureza humana? Sempre que algum revolucionário tentar vender uma ideia fantástica de algum “mundo melhor” possível, de um “novo homem”, de uma sociedade parida da tabula rasa somente com base na “ciência” e na “razão”, seria bom o leitor lembrar dessas distopias e responder: Shakespeare!
Viva o passado, a cultura e as tradições, fundamentais para a continua construção de um futuro realmente melhor, ainda que sempre imperfeito e sob pilares frágeis, pois frágil é a civilização criada a partir da natureza humana.
* Leandro Ruschel comentou sobre o assunto:
O livro “1984”‘ de George Orwell está vendendo como água. Leio na grande imprensa fake news que o motivo é a presidência de Donald Trump e o seu totalitarismo. É a obra-prima de Orwell, um dos melhores livros que já li, talvez a mais inteligente e criativa crítica ao comunismo. Aqueles que lerão 1984 com o objetivo de entender Trump talvez percebam que o presidente americano não é o Grande Irmão, mas sim um oponente do projeto totalitário mais ousado que o mundo já viu: o socialismo globalista. Como diria Churchill, “…os nazistas do futuro chamarão a si mesmos de anti-nazistas”.
E essa era justamente a estratégia de inversão da verdade em 1984.
Rodrigo Constantino
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