Por Percival Puggina
Penso que todo brasileiro deveria assistir ao filme Hércules 56. Isso se aplica, especialmente, aos que se interessam pela história do período 1964-1985 e aos que tenham curiosidade de conhecer o pensamento de protagonistas da esquerda armada, tais como, entre outros, José Dirceu, Franklin Martins, Vladimir Palmeira, Ricardo Zaratini.
Trata-se de um longa do diretor Sílvio Da-Rin, composto por entrevistas, gravações de época e uma espécie de coletiva desenrolada numa mesa de bar. Os participantes da coletiva são remanescentes dos sequestradores do embaixador norte-americano em 1969 e do grupo despachado para o México, por exigência deles, a bordo da aeronave que dá nome ao filme.
Eu assistira, antes, ao “O que é isso companheiro?”. Nele, Fernando Gabeira assume participação importante no sequestro. Em Hércules 56, Gabeira some. Por quê? O diretor, após a estreia, em 2006, explicou que Gabeira fora “soldado raso” na operação e jamais teria participado não houvessem os líderes escolhido para refúgio a casa onde ele morava. Praticamente mandou Gabeira procurar a própria turma e não inventar lorota. Só encontro uma explicação: o então deputado Fernando Gabeira se transferira do PT para o PV e perdera a simpatia dos companheiros.
Do conjunto da obra (Hércules 56 é um bom documentário), concluí que, hoje, a maior parte dos protagonistas considera o sequestro e a luta armada como equívocos que estimularam o endurecimento e a continuidade do regime. Escolheram esse caminho por descrerem do jogo democrático. Eram militantes, dispostos a morrer e a matar pela revolução comunista que queriam fazer, e sobre cuja existência real, pelo que pude presumir, não têm mais tanta certeza.
Imagine, leitor, se, em vez de senhores de meia idade, reflexivos, mas orgulhosos dos seus ímpetos juvenis como se apresentam no filme, eles tivessem sido vitoriosos, e chegassem ao poder, como desejavam, na esteira do que realizara Fidel partindo de Sierra Maestra. O que teriam implantado no Brasil? Totalitarismo marxista-leninista, expropriações, tribunais revolucionários e execução de conservadores, liberais, burgueses, latifundiários, empresários, direitistas. E mais, partido único e total absorção da comunicação social pelo Estado. Era o que, na época, se chamava “democracia popular”, regime adotado pelas referências mundiais do comunismo.
Não estarei indo longe demais? Não. Assista ao filme e ouvirá Vladimir Palmeira elogiar o chefe do sequestro, Virgílio Gomes da Silva, por lhes ter dito: “Se houver algum problema que, por desobediência a uma ordem minha ou vacilação, coloque em risco a operação, não pensem que vou esperar um tribunal revolucionário. Eu executo na hora”. Quem trata assim os companheiros, como procederá com os adversários? Noutra passagem, os entrevistados respondem à seguinte questão: caso as exigências não fossem atendidas pelo governo, o embaixador seria executado? Foi unânime a confirmação. Palmeira ilustra que essa mesma pergunta lhe fora feita no interrogatório posterior à sua prisão. Resposta: “Teria executado, sim; eu cumpro ordens”. E os cavalheiros, ex-revolucionários, em volta da mesa do bar, riram com ele. Franklin Martins riu mais alto do que todos.
Personagens daqueles anos passaram pelo poder, nele se acantonaram e se lambuzaram. Outros vivem a nostalgia da mentira em que, de tão repetida, acabaram acreditando. Outros ainda, sequer viveram aqueles anos e servem à mesma causa sequestrando a verdade e não tendo negócios a fazer com ela, executam-na, diariamente, nas salas de aula, nos meios de comunicação e nas tribunas dos parlamentos.
• Artigo publicado em 2009 com o título “Hércules 56, do que Escapamos” e reproduzido agora em atenção a pedidos de leitores. Tem pequenas alterações em relação ao original, escrito ainda durante o segundo mandato de Lula.
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