Entre várias diferenças culturais gritantes que um brasileiro pode perceber morando nos Estados Unidos, o império das leis talvez seja a mais relevante. Acostumado com a “malandragem” carioca, com a Lei de Gérson vigente em nosso país, com o jeitinho brasileiro, o sujeito leva um susto aqui, ao perceber como as leis não são “para inglês ver”, mas sim para serem respeitadas.
O “império das leis”, ou rule of law, é uma das mais importantes conquistas da civilização ocidental, que vem avançando desde a Carta Magna, de 1215. Impor limites mesmo aos poderosos, criar um ambiente em que todos são iguais perante as leis, que devem ser conhecidas ex-ante, de forma transparente, foi um marco responsável pelo progresso.
E não é preciso muito esforço para ver como estamos distantes disso no Brasil. Três colunas mostram bem a inclinação pela gambiarra que temos no Brasil. Carlos Alberto Sardenberg, no GLOBO de hoje, conta a história de um amigo seu, professor aqui na Universidade de Miami, que foi parado pela polícia por excesso de velocidade. Tentou alegar que estava atrasado para a aula, e o policial prometeu dar a multa bem rapidinho. O apelo para os problemas pessoais não cola aqui, pois as leis são impessoais. Já no Brasil:
Já são três casos: o prefeito pode furar sinal vermelho, o juiz pode ganhar mais que o teto, um ficha suja condenado pode ser candidato a presidente. O prefeito é responsável pelo respeito às leis do trânsito; o juiz é responsável pela aplicação da lei em geral, inclusive da que trata de remunerações do funcionalismo; e o presidente é responsável pela ordem legal republicana.
Todos legalizando o ilegal. E desmoralizando a política.
Sardenberg conclui: “Eis porque a Lava-Jato causa alvoroço. A operação está dizendo que roubar é crime e que os ladrões vão para a cadeia. Dizendo só, não, está aplicando a regra segundo a qual a lei vale para todos. Simples, assim. É um assombro”.
Para os padrões nacionais, é mesmo um assombro. Onde já se viu aplicar as leis? Ou mais: respeitar o espírito das leis? Em sua coluna desta quarta, Helio Schwartsman também falou do caso do auxílio-moradia do juiz, condenando as gambiarras que fazemos para driblar os limites das leis:
O problema com soluções criativas como essa é que deixam fios desencapados. O aspecto legal do auxílio-moradia pode até estar coberto, mas o moral não. A extensão do benefício é percebida pela população como uma gambiarra. E, quanto mais juízes são vistos como espertalhões que não pensam duas vezes antes de abocanhar privilégios, menos são percebidos como “espectadores imparciais” (a imagem é de Adam Smith), que é o que daria credibilidade a suas decisões. É a própria confiança no Judiciário que está em jogo aqui.
Como o auxílio-moradia não é a única gambiarra de que o Brasil se serve –elas proliferam nos outros Poderes e na iniciativa privada–, é a própria ideia de República que vai se perdendo na sucessão de improvisos mal-ajambrados.
República não combina com “malandragem”, com “leis privadas”, ou privi leges. A República pretende justamente acabar com os privilégios, e tratar todos os cidadãos como iguais de acordo com as leis vigentes. O custo de nossa “malandragem” é alto demais, como tentei mostrar em meu último livro. Gustavo Nogy, colunista da Gazeta, também comentou o caso do juiz:
O animo reivindicatório de Bretas – notem a enfática caixa-alta: “VOU À JUSTIÇA” – é o de todos nós: temos olhos, bocas, ouvidos e mãos para agarrar nossos direitos com pressa e verdadeiro espírito constitucional, mas cumprimos com má vontade deveres e obrigações. Queremos muito mais nos servir do país, que servir a ele.
Por favor, antes que retruquem: “servir ao país” não deve ser confundido com nacionalismos extemporâneos ou fidelidade à hierarquia. Quero dizer que, no Brasil, do funcionário público ao juiz famoso, do vereador ao presidente, a preocupação é exigir o nosso pedaço. Se isso irá afetar as contas públicas, se isso é imoral, se isso engorda, pouco importa. Importa que nossa parte esteja separada.
Com esse élan não se faz um país habitável. À parte o tamanho do Estado e questões de filosofia política mais abstrata, o convívio na pólis depende muito de como entendemos a tensão entre direitos e deveres. Precisamos de juízes escolados em algo mais que a Lei de Gérson.
Nossos homens públicos, mesmo aqueles de reputação a mais ilibada, não parecem saber disso. Talvez precisem de uma renovada educação jurídica – minto: ética – em que deveres e obrigações venham antes, ou pelo menos junto, dos irrenunciáveis direitos de que tanto nos lambuzamos.
Chega de tantas gambiarras! Chega da máxima “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. É hora de entender que essa “malandragem” toda criou apenas um país de otários. Somos “espertos” no varejo, e idiotas no atacado. Criamos um país inviável, insustentável, insuportável. Se tivermos tantas leis que “não pegam”, isso irá desmoralizar o próprio conceito de lei. E aí teremos o caos do “cada um por si e todos contra todos”.
Rodrigo Constantino
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