Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal
Nossa história é marcada por aquilo que Carlos Lacerda chamava de o distanciamento entre o “país real” e as deliciosas e banais ficções construídas para pairar sobre ele. Por mais dignas que essas ficções sejam, em algum momento elas precisam se cruzar com a concretude do real – e é precisamente o que, por vezes, não acontece.
Durante o Império, construímos uma experiência fascinante de desenvolvimento de um Estado independente com inspirações europeias e um Parlamento com fulgurantes estadistas a dissertar sobre os anseios mais liberais ou as prudências mais conservadoras; contudo, como havia percebido José Bonifácio já ao começo do século e como perceberam Nabuco e outros abolicionistas nos estertores daquele ciclo, uma engenharia extraordinária erguida sobre um colosso de fazendas de escravos, escravidão que, tal como brilhantemente descrito em O Abolicionismo, se entranhou perniciosamente na conformação nacional.
Ficção muito maior, porém, se instalou na República Velha. “República”, a gloriosa novidade da cidadania, a soberana decisão do voto para eleger o máximo mandatário, os novos Estados Unidos dos trópicos… Pois quê! Um golpe militar, a partir do qual o cenário era basicamente de votos de cabresto, coronelismo, controle da posse dos eleitos, uma vida pública marcada pelo duelo clânico de oligarquias, um país definido por poucos em acordos para os quais as eleições nada mais eram que um ritual de ratificação.
Depois, uma ditadura, seguida de uma República em que os maiores partidos eram egressos das forças políticas que sustentaram o período anterior, com uma legislação eleitoral viciada que favorecia o PSD e o PTB e cédulas distribuídas pelos próprios partidos (ao começo, inclusive, produzidas por eles mesmos). Foi aí que, sobretudo após o suicídio de Vargas – o próprio ditador, que saiu de sua ditadura ileso e pronto para um breve retorno ao poder -, Lacerda começou a apontar o que julgava a fissura entre o “país real” e o da imaginação. Muitos ao seu redor, inclusive correligionários, estavam tratando a realidade nacional em termos da realização de eleições normais, combinando candidaturas, discutindo nomes… Enquanto isso, o aparato herdado do Estado Novo permanecia intocado.
Em 1988, depois do regime militar, também se criou outra grande ficção, a “Constituição cidadã” – uma maravilha repleta de minudências sobre direitos sociais e outras sofisticações, pouco preocupados que estavam os nacional-populistas do PMDB com os recursos materiais necessários para viabilizá-los.
Nosso temor é de que, nesta hora extrema de definição, embarquemos novamente em ficções. Alguns discursos economicistas, acreditando que, em um país em que temos sessenta mil vítimas anuais de homicídio e as pessoas mal se sentem seguras ao pisar do lado de fora de suas casas, os únicos temas relevantes são a taxa SELIC ou as reformas econômicas, cabem nessa categoria. Flutuam perfumados sobre uma realidade suja e sangrenta que acabará por se impor. Da mesma forma, ao contrário, aqueles que querem crer fervorosamente que a necessidade imperativa das reformas é uma farsa “neoliberal” trafegarão em uma fantasia que pode nos deixar a todos com o pires na mão.
Porém, o pior não é isso. O pior é que, para se chegar a planos que ataquem essas searas, é preciso eleger plataformas. Para eleger plataformas, é preciso, no mínimo, que tenhamos alguma confiança no sistema eleitoral. Eis a maior das ficções: não podemos repetir os erros do passado e viver a pular etapas. A impressão do voto nas urnas eletrônicas foi aprovada em 2015 pelo Congresso, a partir de projeto do deputado Jair Bolsonaro. Agora, o TSE quer utilizar a impressão em apenas 5% das urnas, desrespeitando a prerrogativa do Parlamento, e a procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu ao STF que simplesmente aniquile essa obrigatoriedade.
Essas pessoas não receberam voto para decidir pelo Congresso, por pior que ele seja. É mais um caso de ativismo judicial, cuja consequência é perverter as aspirações democráticas do Brasil. Precisamos sair do mundo da fantasia e centrar fogo nesse assunto. Todos nós: Movimento Brasil Livre, Livres, Brasil 200, Amoêdo, Bolsonaro, Flávio Rocha, conservadores, liberais. Isto nos interessa, mais do que como defensores de determinadas ideias ou siglas, como brasileiros. Quando se joga xadrez, é preciso ter certeza de que as peças estão todas no jogo. Portanto, que nos sintamos conclamados a entender as prioridades e saber tratar a concretude do real como ponto de partida.
Impressão nas urnas já!