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Rousseau deixou mesmo, como legado, uma praga. A ideia romântica de “bom selvagem” nos acompanha desde então. Na verdade, vem de antes, mas foi o filósofo suíço quem melhor formulou o conceito. Nascemos livres, mas criamos grilhões por toda parte. A propriedade privada é nosso maior inimigo. Sem isso, “imagine”, teríamos um mundo sem crimes, violência, brigas, guerras. Todos unidos, desfrutando da natureza, como numa lagoa azul.

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A ideia de perfeição ao natural vem aplacar as angústias do ser humano, que precisa enfrentar todo tipo de problema e desafio no mundo real. Trabalho, doenças, falta de sentido, decepções, o pacote completo. Aí ele sonha com uma vida idílica, uma válvula de escape, uma deliciosa fuga para sua condição imperfeita e, muitas vezes, infeliz. É o resgate de um Éden perdido, em que podíamos curtir com toda nossa inocência uma vida tranquila e sem tantas preocupações.

Michel de Montaigne, no século XVI, já flertou com a visão de um passado idílico. Em seus ensaios, quando fala sobre os canibais, podemos notar esse desejo de crer que os “bárbaros” vivem melhor que os “civilizados”. Resgata também filósofos que falavam desse éden perdido, desse estágio fantástico antes de os costumes serem alterados pela civilização. Ele escreve:

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É um povo, diria eu a Platão, no qual não há a menor espécie de comércio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciência dos números; nenhum título de magistrado nem de autoridade política; nenhum uso de servidão, de riqueza ou de pobreza; nem contratos; nem sucessões; nem partilhas; nem ocupações, exceto as ociosas; nem vestimentas; nem agricultura; nem metal; nem uso de vinho ou trigo. Mesmo as palavras que designam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a maledicência, o perdão são inauditas.

O tom de aprovação fica ainda mais forte. Montaigne considera tais características positivas. A civilização seria hipócrita, falsa, mentirosa, enquanto a “barbárie”, o homem em seu estado “natural”, seria algo bem melhor, mais livre e genuíno. Quantos não adotam essa falácia até hoje? Para cada Darwin, que olhava com lentes mais realistas o mundo atrasado, há uns dez românticos, dispostos a substituir a realidade pela fantasia, e sonhar com as maravilhas de um “paraíso perdido”.

Tudo isso foi para chegar na coluna de Arnaldo Bloch hoje no GLOBO, uma carta a Bolsonaro sobre os índios. Já comentei aqui a inversão tosca da imprensa sobre a fala do presidente eleito, mas Bloch dá enfoque diferente: ele pretende sustentar que zoológico humano seria “aprisionar” os índios na “selva de pedra” da nossa sociedade. Ou seja, os animais somos nós! Já os índios são seres “livres por natureza”. Sim, é exatamente a expressão que ele utiliza:

Senhor presidente eleito: li suas mais recentes declarações sobre os povos indígenas. Nelas o senhor pergunta por que, no Brasil, devemos “mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológicos”. Palavras que sugerem estarem os índios atrás de jaulas. Ora, um índio, quando em sua terra, vivendo segundo seu modo, e estando os rios limpos, a fauna e a flora preservadas, é o homem livre por natureza. Nessas regiões, está provado, sua presença garante a sobrevivência da cobertura florestal e das espécies. Sua escolha é estar ali.

Em primeiro lugar, não está provado que o domínio indígena preserva a natureza, as florestas, os animais. Ao contrário: índios foram historicamente ávidos em destruir tudo à sua volta para se preservar, e incendiavam com grande frequência florestas com esse intuito. A ideia de que índio é amigo da natureza é tão boba quanto a ideia de que a natureza é amiga do homem sempre, e não extremamente hostil inúmeras vezes.

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Mas Bloch quer manter os índios nessas reservas, isolados, e ainda diz que é uma escolha deles. Mesmo? Então todos eles têm acesso ao poder de escolha, de viver daquela forma primitiva ou de abraçar as conquistas da modernidade? Foi feito um plebiscito? Há eleição, democracia, votação, garantias às minorias, liberdade individual, tudo isso que aprendemos a valorizar na civilização de que somos “prisioneiros”? Bloch enaltece o “pluralismo” de culturas, parece no fundo desprezar a nossa, mas não troca de papel com o índio “livre” de jeito nenhum, talvez porque fosse duro demais abrir mão de celular, remédios e ar condicionado. Diz ele:

Se sua ideia de seduzir as populações indígenas com participação em empreendimentos que destroem suas moradas prosperar, o que resta dessa liberdade será subtraído em prol da platitude da monocultura extensiva, das usinas ou da mineração “canibal” (como chamam os ianomâmis). Aí, sim, eles serão animais de zoológico, zumbis amalgamados na selva de pedra e de metal.

Quando o senhor, presidente eleito, diz que o índio é um ser humano igual a “nós”, esquece-se de que ser humano, para ser igual, implica ser diferente segundo suas especificidades, e igual dentro da pluralidade. Que cada cultura traz diversos tratos com o mundo, com o social, com o ambiental. E que a resultante de diferentes vetores é que faz o mundo avançar na direção da luz, inclusive para os que creem que Deus está na proa.

Ora, para cada cultura trazer diversos tratos e termos como resultante uma síntese ou o pluralismo é necessário que haja interação entre as culturas, não que fiquem isoladas, blindadas contra qualquer influência de fora. Culturas fechadas se exaurem; culturas abertas evoluem e prosperam. A civilização ocidental soube justamente absorver o que havia de melhor em outras culturas, e por isso teve tanto sucesso relativo, apesar de Bloch pensar que significa uma “selva de pedra e de metal”. Acho que ele preferia passar o resto de seus dias em Nova York em vez de numa reserva ianomâmi.

O que as linhas escritas por Bloch transmitem é uma visão romântica de mundo, de quem pertence à elite, desfruta das benesses da civilização, e mantém os índios como mascotes de uma fantasia de fuga, seres abstratos que caçam com seus arcos e flechas, pescam com as mãos, e vivem mais livres e felizes, pois longe das angústias de nosso cotidiano. Bastaria uma semana vivendo como um desses índios descritos para o escritor abandonar de vez sua ilusão.

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Não vale uma breve imersão antropológica, que são como as férias dos europeus em nossas favelas, em busca de uma adrenalina, uma aventura, e da sensação de superioridade moral porque entrou em contato com os seres mais primitivos e descolados. Tem que viver mesmo como um deles, ser um deles. Aí eu quero ver voltar e repetir que aquele estilo de vida é melhor…

Por fim, uma breve nota sobre o relativismo cultural do colunista. É insustentável prega-lo ao mesmo tempo em que elogia os direitos humanos universais da ONU, por exemplo. Se é da cultura de certos índios matar crianças “defeituosas”, e se não temos nada com isso pois são “apenas diferenças culturais”, então se perde qualquer direito de protestar contra bizarrices e preconceitos da cultura ocidental e ou qualquer outra que seja. Um grupo reacionário machista poderá simplesmente alegar que se trata da sua cultura desprezar mulheres e gays, ou mesmo apedreja-los. Com base em qual critério ou princípio absoluto e universal um “progressista” feito Bloch vai condena-lo? É o “lindo” pluralismo, ora bolas!

Rodrigo Constantino