“A inveja é a paixão que vê com maligno desgosto a superioridade dos que realmente têm direito a toda a superioridade que possuem.” (Adam Smith)
A inveja é um sentimento com profundas conseqüências para o progresso da humanidade, e caso não seja devidamente domesticada, pode limitar bastante nossos avanços. John Stuart Mill considerou a inveja a paixão mais antisocial de todas. O filósofo austríaco Helmut Schoeck escreveu um brilhante livro sobre o tema, chamado Envy: A Theory of Social Behaviour. Seu trabalho deveria ser lido por todos, principalmente por aqueles que defendem uma utopia na qual seria possível construir uma sociedade igualitária, desprovida da inveja. O autor deixa claro, com sólidos argumentos e vasta experiência empírica, que não só é impossível a construção de tal sociedade, como o motivador de seus defensores é muitas vezes a própria inveja.
Em primeiro lugar, é interessante traçar as diferenças entre a inveja e o ciúmes. No caso deste, uma terceira pessoa está envolvida, e o ciumento pretende preservar algo que considera sua propriedade. Ele quer preservar seu ativo de terceiros. Já no caso da inveja, há um impulso destrutivo, onde o outro não ter algo é mais importante que tudo. A eliminação do próprio ativo passa a ser o objetivo. A inveja se mistura muito com o ressentimento, fruto de um sentimento de inferioridade, onde a desgraça alheia é mais importante que a satisfação pessoal do invejoso. Se um vizinho quebrar a perna, o invejoso irá regozijar-se, ainda que isso não faça ele andar melhor. Se um rico for à bancarrota, o invejoso irá comemorar, ainda que isso não o faça mais rico. O homem intensamente invejoso pode inclusive ser possuído pelo desejo de autodestruição, incapaz de tolerar que outros saibam aproveitar a vida e demonstrar felicidade.
Helmut conclui pontos interessantes sobre a inveja, como o fato de mínimas diferenças serem suficientes para despertar muita inveja no homem invejoso, ou que normalmente a inveja está mais atrelada à proximidade das pessoas. Em outras palavras, um não precisa ser um miserável para invejar um rei, sendo mais provável a inveja surgir entre empregados de um mesmo nível onde um deles recebeu um aumento relativo ou um elogio do chefe. Isso derruba o sonho dos igualitários em criar uma sociedade onde todos fossem materialmente iguais, como se isso pudesse eliminar a inveja do mundo. Pelo contrário, em tais sociedades – caso pudessem existir – a inveja seria de um nível bastante elevado, onde um simples agrado de alguém, o olhar de uma mulher, uma mísera demonstração de superioridade intelectual, faria despertar uma inveja incontrolável no invejoso. *
No livro, o autor vai buscar os indícios de inveja – e os mecanismos desenvolvidos para evitá-la – nas sociedades mais primitivas que se tem conhecimento. A crença na magia negra, por exemplo, teria pouca diferença da fé socialista de que o pobre é pobre por ser explorado pelo patrão, ou a crença das nações subdesenvolvidas de que assim estão por culpa das nações mais ricas. O uso de algum bode expiatório, seja a magia negra, o desejo dos deuses ou o capitalismo explorador, serve para consolar aqueles invejosos que não suportam o sucesso alheio explicado por mérito ou alguma superioridade qualquer em relação a si próprio. Se o vizinho teve uma colheita melhor, não pode ser pela sua maior eficiência e produtividade, pois isso seria um atestado de superioridade que o invejoso não está disposto a dar. Diferente daquele que observa e admira o sucesso alheio, o invejoso vai buscar refúgio nas “explicações” fantasiosas, como o uso da magia pelo vizinho, a sorte, o destino traçado pelos deuses etc.
Se todos possuem, em diferentes graus, o sentimento de inveja, a busca de proteção contra o invejoso, o “mau olhado”, sempre esteve presente nas diferentes culturas também. Quanto mais uma sociedade conseguiu controlar os invejosos e dar mais espaço e liberdade para os inovadores, mais progresso atingiu. A alocação de escassos recursos não é eficiente quando o medo da inveja alheia é grande demais. Se o fruto do sucesso será tomado por medidas claramente invejosas como o imposto progressivo, deixam de existir os incentivos adequados para que o empreendedor se arrisque. Se as desigualdades não são toleradas, se alguém souber a priori que seu sucesso será motivo de forte inveja por parte de seus vizinhos, as realizações pessoais serão ínfimas, e por conseguinte a da sociedade em questão também.
Por isso que as comunas israelenses, os kibbutzin, jamais seriam capazes de evoluir da subsistência agrária, e o pouco avanço existente vem emprestado de fora, dos países industriais capitalistas. O socialismo, a pura idealização da inveja, onde todos devem ser iguais como os insetos gregários são, seria a vitória da mediocridade sobre o talento, sobre as conquistas individuais. Numa sociedade igualitária, a inveja derrota o sucesso, as realizações pessoais. Eis o ideal dos invejosos, que trabalham para incutir um forte sentimento de culpa naqueles que, de alguma maneira, destacaram-se na sociedade. Temendo a inveja alheia, muitos desses sucumbem também ao sonho – ou pesadelo – igualitário.
Com isso em mente, deixo a conclusão nas palavras do próprio filósofo: “O desejo utópico por uma sociedade igualitária não pode ter surgido por qualquer outro motivo que não a incapacidade de lidar com a própria inveja”.
* Robert Nozick disse coisas interessantes sobre o tema, em Anarchy, State, and Utopia. Ele lembra que a auto-estima se baseia nas características de diferenciação entre indivíduos. Os julgamentos sobre quão bem realizamos determinada tarefa ocorrem através da comparação com o desempenho dos outros. Não há um padrão para saber se algo é bem feito independente de como ele pode ser feito por outros. Quanto Trotsky disse que, no comunismo, o homem médio seria do peso intelectual de um Aristóteles ou Goethe, ele ignorou que, todos sendo desta forma, ninguém acharia grande coisa tal característica. Ser como Goethe seria estar na média, ser medíocre, e o indivíduo ainda poderia ter problemas com a auto-estima. Adotando um modelo simples de dimensões diferentes de importância de atributos, quando uma dessas dimensões é equalizada, como a riqueza, a sociedade acaba escolhendo outra dimensão qualquer como a mais importante. Seja a inteligência, a beleza, a força, não importa, sempre haverá uma nova dimensão para suscitar julgamentos acerca das diferenças individuais. São estas diferenças que importam para a auto-estima. Qual o orgulho que alguém pode ter por saber falar, onde todos sabem? Quem se sente satisfeito consigo mesmo apenas por ter direito ao voto, enquanto todos têm? No passado, o direito de votar poderia ser um diferencial, mas uma vez que temos o sufrágio universal, esta deixa de ser uma dimensão relevante. Portanto, para Nozick, o caminho mais promissor para que a sociedade possa evitar grandes diferenças na auto-estima seria não ter um peso comum das dimensões, mas sim uma diversidade de diferentes dimensões e pesos. Assim, cada um poderia achar as dimensões que alguns outros também consideram importantes, permitindo alguma avaliação positiva de si mesmo. A diversidade descentralizada do liberalismo é um remédio para a inveja bem mais eficiente que a igualdade centralizada do socialismo.
Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.