Uma das ideias mais fascinantes do cristianismo talvez seja a do “pecado original”, com a noção de que somos “anjos caídos”, e essa “queda” significa que somos, no fundo, criaturas fadadas ao pecado, à imperfeição, ainda que sejamos perfectíveis, i.e., passíveis de melhora. Em minha fase de ateu objetivista, leitor assíduo de Ayn Rand e Nietzsche, demorei a compreender a relevância dessa mensagem. Achava que era uma forma de louvar tudo o que é “rastejante” contra o homem independente, o “super-homem”.
Ledo engano. Reconhecer que somos imperfeitos e pecadores não é o mesmo que louvar os piores ou condenar os melhores entre nós, e sim um passo fundamental para evitar o maior pecado de todos: o do orgulho. Não um orgulho genuíno por nossas conquistas legítimas e meritocráticas, e sim aquele da húbris, quando deixamos a humildade de lado e tentamos bancar Deus, substituir Deus, como fez Prometeu (ou Viktor Frankeinstein).
Em Cristianismo puro e simples, C.S. Lewis comenta sobre esse terrível e tão comum pecado:
De acordo com os mestres cristãos, o vício fundamental, o mal supremo, é o orgulho. A devassidão, a ira, a cobiça, a embriaguez e tudo o mais não passam de ninharias comparadas com ele. É por causa do orgulho que o diabo se tornou o que é. O orgulho leva a todos os outros vícios; é o estado mental mais oposto a Deus que existe.
[…]
A questão é que o orgulho de cada um está em competição direta com o orgulho de todos os outros. Se me sinto incomodado porque outra pessoa fez mais sucesso na festa, é porque eu mesmo queria ser o grande sucesso. Dois bicudos não se beijam. O que quero deixar claro é que o orgulho é essencialmente competitivo – por sua própria natureza -, ao passo que os outros vícios só o são acidentalmente, por assim dizer. O prazer do orgulho não está em se ter algo, mas somente em se ter mais que a pessoa ao lado.
E daí vem ela, a inveja, insidiosa, rastejante feito um réptil, fomentada por nossa vaidade e nosso orgulho. O invejoso não liga se tem hoje mais do que tinha ontem, se melhorou sua qualidade de vida, se está com boa saúde, e sim se tem mais ou menos do que o vizinho. Não lhe importa correr mais do que corria no passado, e sim ver o outro correndo menos. Ele ficaria feliz se seu vizinho quebrasse as pernas, mesmo que isso em nada lhe ajudasse a correr mais rápido.
Somos todos, de certa forma, invejosos. Uns mais que outros, sem dúvida, mas o sentimento mesquinho e vil estará sempre lá, à espreita, pronto para assumir o controle da situação. A mensagem cristã, nesse aspecto, ajuda-nos a manter a humildade e o realismo, em vez de acharmos que somos a última Coca-Cola do verão, o ser mais incrível que já pisou no planeta, aquele isento de pecados, sendo a inveja, talvez, o mais comum de todos.
Li e recomendo o livro Envy: The Seven Deadly Sins, de Joseph Epstein, que faz parte de uma nova coletânea justamente sobre os sete pecados capitais, como diz o nome. E o interessante da leitura é o reconhecimento do próprio autor quanto à sua inveja, sem rodeios, sem tentar mascará-la. O livro é uma ótima introdução ao estudo mais completo de Helmut Schoeck, Envy: A Theory of Social Behavior, bastante mencionado na obra e que também já li e considero leitura obrigatória para quem quer se aprofundar no assunto.
Não é tão fácil reconhecer a inveja porque ela é um sentimento que costuma permanecer oculto, escondido em nós mesmos. Quando sofremos algum infortúnio, normalmente perguntamos: “por que eu?”. O invejoso é aquele que observa qualidades alheias e se questiona: “por que não eu?”. Por que ela é mais bonita, ele é mais rico, aquele parece mais feliz e aquela mais poderosa?
Poucos ambientes são tão dominados pela inveja como o intelectual. Como diz Epstein, se você quiser cheirar a inveja no ar, basta visitar Harvard, Yale, Princeton, Chicago, Berkeley ou Stanford. Há grande concentração de mentes brilhantes nesses lugares, mas como a inveja é fruto do orgulho, e este, como vimos, é sempre competitivo, não importa a quantidade de gênios, pois um sempre será melhor do que o outro em alguma coisa, ou receberá um prêmio exclusivo, ou a atenção maior dos alunos, ou um salário maior.
A inveja está no centro das teorias psicanalíticas freudianas, a começar pelo Complexo de Édipo, pouco mais do que a inveja do filho pelo direito (ou poder) do pai de dormir com sua mãe, ou a inveja do falo masculino pelas mulheres, que elas supõem preencher um vazio existencial, ou ainda a inveja entre irmãos que disputam a atenção dos pais. Na Bíblia, Caim e Abel simbolizam justamente isso: a inveja de um irmão por outro por ter conquistado mais as graças paternas.
Freud falava ainda do narcisismo das pequenas diferenças, e é exatamente isso: um operário não terá tanta inveja assim do rei, pois sua realidade está muito distante, mas poderá morrer de inveja do colega operário que recebeu uma promoção singela ou do vizinho que conseguiu comprar um carro mais novo. A inveja tende a ficar por perto, exatamente por ser competitiva.
É claro que a inveja pode se transformar num sentimento construtivo também, que mobiliza o sujeito para se esforçar mais. Seria o caso da “inveja boa”, como dizia Aristoteles, aquela que termina em admiração pelo outro e serve como fator de incentivo para que suas ações sejam imitadas. Mas normalmente a inveja não funciona dessa forma positiva. Ela acaba dominando a pessoa, e destilando o ódio em seu coração.
E temos no marxismo o ápice da inveja, toda uma ideologia calcada nesse sentimento, na “luta de classes”, no sucesso alheio visto como resultado da exploração. O socialismo é pouco mais do que a idealização da inveja, uma tentativa de transformá-la em teoria de vingança, ou mascará-la sob o manto de “justiça social”. Mas, no fundo, o que move a maioria dos socialistas é mesmo a pura inveja.
Uma piada captura bem essa mentalidade comum na Rússia. Quando um francês, um inglês e um russo descobrem uma lâmpada mágica e têm direito a um pedido, o francês pede uma propriedade ainda melhor do que a do vizinho, o inglês pede mais riqueza ainda do que o vizinho rico, enquanto o russo, que lamentava a vaca do vizinho dando sempre mais leite, pede: “Eu quero aquela vaca morta!”
Sejamos, porém, honestos: a inveja não é monopólio da esquerda, muito menos dos russos. Está em todos nós. E sendo ela um sentimento ruim, fazemos de tudo para camuflá-la, muitas vezes com um sucesso tão grande que a escondemos de nós mesmos. É o perigoso autoengano, quando chamamos de “justiça” aquilo que, lá no fundo, não passa de inveja. “Quero o meu quinhão também! Por que não eu?”
E mais perigoso ainda é quando passamos a acreditar que é possível desaparecer com a inveja por meio de mudanças políticas, ou seja, endossando alguma ideologia utópica. Nada mais falso. A inveja só pode ser combatida mesmo em nível individual, dentro de nossos corações. E apenas com realismo, ou seja, admitindo para nós que ela sempre estará lá, remanescente, pronta para controlar nossa mente, ainda que de forma dissimulada.
Ela não é efeito do dinheiro ou do capitalismo; é parte de nossa “natureza humana”. E alguém sempre terá, em qualquer sistema, algo que não temos e invejamos. Pode ser o amor de uma mulher, alguma característica biológica qualquer, a estima dos outros, um poder maior. O igualitarismo não suporta as diferenças, pois o igualitário, no fundo, sabe ser um invejoso, que se veste de altruísta para defender a destruição dessas diferenças por meio da força, do estado.
Portanto, pergunto: já tentou domesticar a sua inveja hoje, caro leitor? Comece admitindo sua existência, assumindo que você não é tão diferente assim dos reles mortais. O segredo do diabo é fingir que não existe, andar por aí sem chifres. Há muitos que se julgam os mais caridosos e abnegados do planeta, e que deveriam, mais do que todos, olhar bem no espelho e perscrutar seus próprios pecados, às vezes escondidos no fundo da alma, mas ditando cada ação, cada passo do indivíduo que se acha muito nobre.
Um Feliz Natal a todos!
Rodrigo Constantino