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La Casa de Papel: da ficção à realidade
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Terminei de ver ontem a segunda temporada de “La Casa de Papel”, série da Netflix que conquistou o mundo. Aviso: haverá spoiler no texto. Em que pese a tentativa de glamourizar os bandidos, confesso que gostei. Ao menos é entretenimento bom, divertido, tem uma trama razoável e personagens interessantes. É superior a “O Mecanismo” de José Padilha em todos os sentidos.

A breve sinopse a maioria conhece: um grupo liderado pelo “Professor” realiza o maior assalto da história, roubando nada menos do que a Casa da Moeda espanhola. Um plano arquitetado pelo líder, chamado apenas de “professor”, em homenagem a seu pai, que se tornou assaltante pois tinha um filho doente – ele – e ninguém se dispôs a ajudá-lo.

O toque sensacionalista já fica evidente. O algoz é vítima, é o coitadinho. Se o pai não consegue pelas vias legais e legítimas trabalho para arcar com os custos do tratamento do filho doente, então qual a alternativa senão roubar bancos, não é mesmo?

O lado humano dos bandidos vai sendo moldado e retratado com destaque. Uma delas perdeu a guarda do filho porque comprava drogas, o outro era um jovem brilhante em tecnologia que se desviou no caminho, pai e filho eram ótimas pessoas que “apenas” mergulharam no crime por falta de opção, e por aí vai. Até o mais psicopata deles se redime no final, ao “morrer com dignidade” e salvar aquela que, até ali, estuprara.

Os assaltantes são claramente os heróis da série, enquanto o chefe do Serviço de Inteligência é um crápula, disposto “até” mesmo a ameaçar a ex-investigadora com a perda da guarda de sua filha “só” para obter o local onde os bandidos estão e impedir uma fuga com mais de um bilhão de euros roubados. Vejam só que sujeito insensível e desumano!

Eis o que incomoda na série: o lado humano dos policiais nunca é destacado. Não vemos o cotidiano duro do policial que se mete na frente de balas de fuzis para tentar proteger a propriedade e a vida dos outros, salvar reféns e fazer cumprir a lei. Não ficamos sabendo quantos filhos eles possuem, como precisam ralar para oferecer um sustento mínimo a eles, as dificuldades de suas infâncias e os problemas em seus relacionamentos.

Eles são como autômatos ali, como personagens sem alma colocados só para levar chumbo dos bandidos “mocinhos”. Até a secretária grávida, vítima da Síndrome de Estocolmo, não titubeia quando vê seu novo amor em risco: pega uma arma e começa a disparar contra esses policiais. O amor é lindo! Ela se torna uma heroína, mas não vem ao caso se poderia ter se tornado uma assassina de policiais também. Detalhe bobo…

Exagero, mas só um pouco. O lado ruim da bandidagem também é mostrado. Não é vida fácil, há desencontros, perdas, sofrimento, revolta, e o aspecto negativo de suas condutas também aparece. Mas ficam em segundo plano frente ao glamour do ato grandioso que estão a realizar. Se a Casa da Moeda imprimiu mais de 170 bilhões de euros por ano, criando “riqueza” do nada para alguns, então qual o problema de essa gente sofrida lutar pelo seu quinhão, no caso o seu bilhão?

O sistema não é todo construído com base em pilares… de papel? Então está liberado cada um por si contra esse sistema injusto. Conheço alguns anarquistas que devem ter vibrado com essa lógica… e caberia responder a Ciro Gomes: sim, deu bilhão!

Como confessa o próprio professor, a tática é colocar a opinião pública a favor deles, os bandidos, como se fossem os heróis em luta contra injustiças. E é exatamente o que faz a série: usa a mesma tática do professor, lembrando que nós somos a opinião pública. Chegamos a torcer por eles quando estão encurralados pelos policiais, trocando tiros. E achamos bonito o final, quando professor e inspetora se encontram em uma ilha distante, para celebrar o amor.

Que ela seja uma traidora da Pátria, dos seus colegas e de seus compromissos, e também uma péssima mãe, aliás, não vem ao caso. Estamos lidando com ficção, e tudo que precisamos ali é de uma história interessante e bem contada. E isso temos.

Não acho que devemos politizar tudo, ainda que muitos, normalmente de esquerda, tentem fazer justamente isso. Se formos julgar todo livro, todo filme e toda séria com base no filtro ideológico estaremos cometendo o mesmo erro. A série tem uma mensagem sensacionalista, toma o partido dos marginais? Tudo bem. Não deixa de ser boa diversão por causa disso. Saibamos separar as coisas.

Minha filha já tinha me alertado: “Pai, você não vai gostar do final”. Fui preparado. Não fiquei comovido pela paixão da inspetora, que considerou a hipótese de perder a guarda da filha para não entregar seu amante de uma semana. Quando o coronel, chefe da Inteligência, coloca a coisa dessa maneira, era para o enxergarmos como um monstro? Se era, comigo falhou. O cara não era um cafajeste, mas o ícone do bom senso. Tinha um dever a cumprir, uma missão, e tal ameaça pareceu suave diante do que estava em jogo.

Mas deixemos o teor ideológico um pouco de lado. Quantos são os filmes em que mocinha se apaixona por bandido? Vamos jogar tudo no lixo só porque pode transmitir uma mensagem equivocada aos mais iludidos? Sim, claro que eu prefiro uma série como “Breaking Bad”, que também tem esse lado do glamour do crime, mas que termina mal para o criminoso, ao contrário de “La Casa de Papel”. Não vejo, porém, tanto problema assim em o marginal vencer de vez em quando. Não ocorre o tempo todo na vida real?

Nesses casos, resta só aguardar a justiça divina. Os que nela acreditam, naturalmente. E lembrar que se trata, ali, apenas de ficção, de “licença poética”. Dito isso, entendo quem fica irritado e não gosta da mensagem, por achar que muito imbecil vai levar a sério e ser influenciado pela ficção. Afinal, não condenamos as novelas que glamourizam os traficantes? Alguns são mesmo influenciados por essas coisas. É o caso desse “Youtuber”, que acabou preso com seus amigos:

O youtuber Gerson Albuquerque, de 22 anos, e três amigos foram detidos ao tentar invadir um presídio nesta terça-feira (17). Eles queriam gravar uma pegadinha inspirada na série La Casa de Papel, da Netflix.

O grupo foi detido por policiais ao invadir o estacionamento do Centro de Observação Criminológica e Triagem Professor Everardo Luna (Cotel) de Abreu e Lima, em Pernambuco. “Amanhã vocês têm que ver, até abordado a gente foi. Eu nunca vi tanta polícia como hoje”, contou Gerson em um vídeo após o ocorrido.

Ele publicou vídeos em seu Instagram na noite da última segunda-feira, 16, em que dizia se preparar para gravar uma brincadeira. Ele e mais três amigos vestiam macacões vermelhos e máscaras de Salvador Dalí, em referência à série da Netflix na qual um grupo de criminosos executa um assalto à Casa da Moeda da Espanha.

“É de uma irresponsabilidade inimaginável. Foi uma ação arriscada e que só não teve um final trágico graças à experiência dos nossos agentes penitenciários. Recentemente, 21 pessoas morreram numa tentativa de resgate no presídio do Pará. Na ação de hoje, o grupo poderia facilmente ser confundido com estes mesmos criminosos”, falou Pedro Eurico, secretário de Justiça e Direitos Humanos de Pernambuco, por meio de nota.

No vídeo, Gerson chama seus amigos por apelidos: Belém, Paraíba e Minas Gerais. Essa é outra referência à série, uma vez que os personagens usam nomes de cidades de todo o mundo como codinome.

Para cada idiota, porém, há uma maioria que simplesmente curtiu a série, sabendo se tratar de uma obra de ficção, e entendendo perfeitamente que não é “engraçado” vestir máscaras esquisitas e desafiar policiais por aí…

Rodrigo Constantino

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