Difícil responder a essa pergunta. Ninguém sabe onde tudo isso vai parar, e se a Operação Lava-Jato será mesmo capaz de refundar nosso sistema político, hoje totalmente carcomido. E mais: se tal reformulação – ou revolução – será mesmo no sentido correto, ou seja, de mais descentralização de poder, menos estado e mais sociedade. Há hoje, no GLOBO, duas colunas com visão igualmente otimista: as de Ricardo Noblat e Paulo Guedes. Comecemos com Noblat:
Uma notícia boa e outra ruim. A boa para os que apoiam a luta permanente contra a corrupção: apesar das pressões, a Lava-Jato está longe de ser concluída, segundo os procuradores federais Deltan Dallagnol e Paulo Roberto Galvão de Carvalho. Seu trabalho se estenderá até o fim do ano ou início do próximo. A notícia ruim para os que almejam uma trégua no combate à corrupção: não haverá trégua.
[…]
Estou pouco me lixando – e imagino que você também – para quem foi condenado ou venha a ser por ter desrespeitado as leis. Primeiramente, não me interessa por qual nome atenda. Muito menos o cargo que ocupe – de carregador de mala até o presidente da República.
A presidente eleita foi afastada e o vice assumiu. Nem o guarda da esquina se assustou. Pode ter celebrado. Se o vice caísse, dar-se-ia posse ao seu sucessor e bola pra frente.
Sem essa de que somos um país com complexo de vira-lata. Estamos condenados ao sucesso apesar do egoísmo e do profundo conservadorismo de nossas elites. Ou elas se renovam ou serão atropeladas pelos que, à esquerda e à direita, ocuparam as ruas em junho de 2013, e desde então. E que amanhã ocuparão o aparelho do Estado com novas ideias.
Só não enxerga isso quem é cego ou não quer ver.
Noblat deposita nas manifestações de junho de 2013, que começaram atacando a alta das passagens de ônibus, o começo da virada. Mas recomendo o livro Por trás da máscara, de Flavio Morgenstern, para quem quiser ter mais clara a distinção entre tais manifestações, orquestradas por uma esquerda organizada, e as que vieram depois, essas sim espontâneas e da população em geral.
Também não acho aceitável o uso do termo “conservadorismo” para se referir a essas elites citadas por Noblat, a menos que tudo aquilo que se queira “conservar” seja “conservadorismo”. Os caciques do PT, PMDB e também PSDB podem até querer preservar o sistema político atual, mas isso não faz deles “conservadores”. Lula foi o maior beneficiado desse sistema, e está longe de ser um “conservador”.
Mas apesar da confusão que tal termo pode gerar, entendo o que o jornalista quer dizer. Vai ao encontro do que o economista Paulo Guedes também diz quando se refere ao Antigo Regime: as “forças do pântano” que pretendem conservar um modelo injusto, afastado dos anseios populares e repleto de privilégios. Diz Paulo Guedes:
A corrupção sistêmica é hoje fato estabelecido. A classe política está sob suspeita. As principais lideranças petistas e peemedebistas estão às voltas com a Justiça. O presidente interino, Michel Temer, não consegue sequer montar um ministério acima de qualquer suspeita. As investigações da Lava-Jato prosseguem com enorme apoio da opinião pública esclarecida. Aonde vai levar tudo isso? A um aperfeiçoamento institucional de uma democracia emergente. Quando vão perder o ímpeto essas investigações e a guilhotina midiática? Quando uma reforma política acenar com um futuro diferente, e as condenações das principais lideranças do Antigo Regime saciarem a opinião pública. Apenas o fim da impunidade e a mudança desse degenerado regime político decretariam o fim da Lava-Jato.
A verdade é que se revelou à luz do dia uma fabulosa engrenagem para a coordenação de tráfico de influência e desvio de recursos públicos. Maus empresários, funcionários públicos corruptos e políticos inescrupulosos aperfeiçoaram essa engrenagem de administração centralizada para o financiamento das campanhas políticas, a compra de sustentação parlamentar e a apropriação indébita de recursos públicos. Grupos de interesses privados financiam políticos corruptos, que por sua vez nomeiam funcionários públicos corruptos para postos-chave dessa engrenagem, que devolvem então aos corruptores privados recursos públicos suficientes para compensar seus “investimentos” na captura de influência política.
Em seguida, Guedes fala do programa de governo que preparou em 1989 que previa ampla privatização usada para abater integralmente a dívida pública federal. Caso isso tivesse sido feito, o governo teria hoje R$ 500 bilhões a mais para gastos sociais. É o montante gasto para pagar os juros da dívida trilionária e crescente do governo perdulário, que gasta muito, rouba muito e gasta mal.
Ou seja, o caminho era e continua sendo o liberalismo, a redução do estado. Noblat e Guedes se mostram otimistas com a Lava-Jato e seus efeitos desinfetantes na política nacional, dominada por caciques em busca de privilégios. A coisa pública no Brasil é tratada como “cosa nostra”, e uma patota se lambuza quando chega ao poder. Uma ala da esquerda se revolta contra isso, mas prega como meio mais estado, o que apenas agravaria a situação. A única saída é o liberalismo.
Mas há um grande obstáculo no caminho: o próprio eleitor. Contra o excessivo otimismo de Noblat e Guedes, temos um interessante contraponto no artigo de Nelson Paes Leme no mesmo jornal. O cientista político é realista ao lembrar do voto leviano de tanta gente no país, já que esses caciques que concentram tanto poder não chegaram lá eleitos por alienígenas, afinal de contas. Diz Leme:
Os gravíssimos episódios do afastamento do presidente da Câmara pelo STF e o pedido de prisão deste e de três dos principais senadores brasileiros, sendo dois deles o atual presidente do Senado e um ex-presidente do Senado, do Congresso e da República — ainda que negado este último liminarmente pelo mesmo STF — dão-nos a medida vergonhosa da indigência moral de significativa parcela de nossos representantes no Parlamento. Isto pelo singelo fato de todos esses parlamentares terem sido eleitos por seus pares. E quem colocou esses pares (e ímpares) no poder? Nós, os eleitores. Não adianta tentar exportar a culpa. A democracia representativa é a evolução da democracia direta. Pode (e deve) ser combinada com esta, como previsto em nossa atual Constituição, através do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular. E lá estão em nossa Carta esses dispositivos constitucionais exatamente para contrabalançar a representação, quando o povo se dá conta de que seus representantes não funcionam ou funcionam mal.
[…]
O voto é uma procuração (um mandato) com poderes quase ilimitados outorgados ao representante para lidar com bilhões, trilhões de reais e resolver problemas cruciais da vida coletiva, como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, saneamento, infraestrutura, finanças públicas e economia popular. Ninguém nomeia um procurador privado sem ter a mais absoluta confiança no outorgado dessa procuração. Mas quando chega a hora decisiva de nomear esse outorgado mandatário público, agimos todos de modo inconsequente, irresponsável e leviano. Raramente alguém se lembra em quem votou nas últimas eleições… Seria o mandato público menos importante do que o mandato privado, a procuração?
O problema é que o eleitor tem pouco incentivo para se informar melhor, já que seu voto vale muito pouco perante o total. É a “ignorância racional” de que falam os economistas. No mais, um país com muitos ignorantes involuntários terá um resultado ainda pior: serão reféns dos populistas de plantão. “Quanto mais inculto e deseducado o país, maiores e mais vergonhosas essas benesses com o suado dinheiro dos contribuintes”, diz Leme.
Com o tempo, esse sistema chega ao ápice do apodrecimento, como vemos hoje. O espírito de corporativismo dos políticos procura proteger o sistema, mas a insatisfação fica cada vez maior. A popularidade da Lava-Jato é reflexo disso. Há uma enorme crise de representação no país hoje. Mas, como lembra Leme, só há uma forma democrática de mudar isso de fato: com o voto. E aí surge o problema: ele deixará de ser leviano, ignorante, populista?
“Dentro de apenas poucos meses, teremos eleições para prefeitos e vereadores. Alguém aí já tem um bom candidato?”, conclui o cientista político. E sabemos da dificuldade de se encontrar bons candidatos, aqueles que realmente representarão o povo mais esclarecido para combater o próprio sistema de privilégios que os receberá.
É aqui que o otimismo de Noblat e Guedes pode parecer excessivo. Falta combinar com os russos. Ou, no caso, com os eleitores brasileiros, ainda pouco esclarecidos e sem uma sólida cultura liberal que enxergue no estado não o caminho para toda solução, mas sim o grande problema.
Não quero parecer o extremo oposto, um nuvem negra pessimista demais. Vejo ventos de mudança no ar, sinto um clima de novidade. Gente nova defendendo o liberalismo nas universidades, ambiente tomado por esquerdistas. Trabalhadores sérios querendo, pela primeira vez, ingressar na política. Partidos adotando discurso mais liberalizante. Tudo isso é muito relevante e alvissareiro.
Mas o Brasil precisa mudar a mentalidade e a cultura do povo, e isso leva tempo. A menos que um déspota esclarecido pudesse impor mudanças radicais de cima para baixo, algo sempre muito arriscado que costuma fracassar terrivelmente, só mesmo com um esclarecimento popular maior teremos chances de mudar para valer o sistema.
O apoio à Lava-Jato é sintoma de indignação, de revolta, de muitas coisas, tudo alimentado pela enorme crise econômica. Mas será que é mesmo sinal de que o povo brasileiro acordou para a raiz do problema, o excessivo tamanho do estado? Há controvérsias…
Rodrigo Constantino
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