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Luta antimanicomial peca pelos excessos

A luta antimanicomial voltou à pauta dos debates por conta da mudança ocorrida no Ministério da Saúde, levando a protestos dos movimentos que defendem o fim dos manicômios. Eles condenam os abusos ocorridos nessas instituições. Mas, como diz o ditado, abusus non tollit usum: o abuso não deve tolher o uso. O maior risco que vejo é o próprio movimento antimanicomial virar um extremismo do outro lado. Tenho um texto sobre o assunto:

Holocausto brasileiro: a loucura da razão e a luta antimanicomial

Li o livro da jornalista Daniela Arbex, Holocausto Brasileiro, e fiquei impressionado com o relato do que ocorreu no hospício Colônia, em Barbacena. São cenas de um filme de terror. O uso do termo holocausto nem chega a ser uma hipérbole marqueteira; está mais para um retrato fiel de um manicômio que foi responsável pela morte, em condições desumanas, de 60 mil pessoas, muitas sequer loucas de verdade.

Segundo a jornalista, cerca de 70% dos pacientes não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas ou mesmo gente que havia incomodado pessoas poderosas. Acabaram confinadas entre muros que configuravam um legítimo inferno dantesco.

Nus sob um frio de rachar a pele, comendo porcaria ou até ratos, rodeados por baratas e moscas, dormindo sobre a palha no cimento, tudo isso entre uma sessão de eletrochoque e outra, ou espancamento, ou mesmo lobotomia. Muitos praticaram trabalho forçado. Após morrerem de todo tipo de doença ou violência, seus corpos eram vendidos para faculdades de medicina, e sua passagem pela vida, apagada como se inexistente.

Daniela dá vida a essas pessoas, preservando assim seu passado. Alguns ainda estão vivos, e ela foi em busca de suas histórias, contadas muitas vezes de forma emocionante, digna de um romance. Seu livro é mais uma arma na luta antimanicomial. Merece aplausos por ter resgatado o lado sombrio dos hospícios, do uso de um poder arbitrário pelas autoridades, tantas vezes convertido em completo abuso e descaso.

Dito isso, confesso não ter forte opinião formada sobre o assunto. Até porque sou leigo na área. Mas arrisco comentar ainda assim. Acredito que é possível fazer um relato tão chocante e tocante do outro lado, mostrando loucos que desgraçaram a vida de inocentes, que infernizaram suas famílias, que mataram ou se suicidaram, livres das amarras dos hospícios.

Não consigo endossar a visão romântica de Foucault, autor de A história da loucura, que pretendia soltar todos os malucos pelo mundo (alguns diriam, de forma cruel, que estava advogando em causa própria). A mesma visão tinha o libertário Thomas Szasz, falecido ano passado.

Li seu Faith in Freedom, em que cita muitos autores libertários de minha área econômica, traçando um paralelo com a psiquiatria. Nele, Szasz defende dogmaticamente o princípio de não-agressão, questionando inclusive a existência de algo como uma doença mental. Somente quem pratica algum ato de agressão deve ser punido. Caso contrário, ninguém tem o direito de tratá-lo contra sua vontade.

É uma visão bonita, que agrada aos ingênuos da esquerda. O diálogo, o carinho, a atenção, esse seria o caminho para “curar” essas pessoas agitadas ou diferentes. Ou então simplesmente as deixamos em paz, pois não temos o direito de afirmar que vivemos melhor que elas, com “sanidade”. Muitos relativizam o próprio conceito de normalidade e loucura. Quem somos nós para julgar? Todos têm um pouco de louco, certo?

Karl Kraus, com sua fina ironia, disse: “O psiquiatra sempre reconhece os loucos pelo fato de exibirem um comportamento agitado após a internação”. Concordo que há diagnóstico em excesso no mundo moderno, que qualquer variação de comportamento é logo vista como doença tratável à base de remédios ou até internação. Mas será que, então, a loucura é um mito? Será que, caso exista, ela pode ser sempre tratada de forma branda, em CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e Serviços Residenciais Terapêuticos?

Seria muito bom. Mas é verdade? Ferreira Gullar, que tem dois filhos esquizofrênicos, chegou a se revoltar contra essa visão “cretina” e “demagógica”, segundo ele. Minimizar os riscos que esses doentes representam para si próprios e para terceiros é perigoso. Em casos extremos, a internação compulsória pode ser a única forma de salvá-los, ou proteger os demais.

Devemos evitar, claro, a mania de Simão Bacamarte, personagem de O Alienista, de Machado de Assis. Ele acreditava ser o único detentor da razão, e constatou que todos na cidade eram loucos, trancafiando-os na Casa Verde. No final, percebeu que o louco era ele mesmo, soltou todos e se prendeu sozinho no hospício.

Também devemos, a todo custo, lutar contra a arbitrariedade e o abuso de poder das autoridades. O filme A Troca, com Angelina Jolie, relata um caso verídico, entre tantos, do mal que isso pode causar a inocentes. O livro de Daniela Arbex também mostra isso muito bem. Famílias separadas, mães que têm seus filhos arrancados à força e doados, tudo isso de forma insensível e criminosa.

Mas isso não quer dizer que malucos não existam, ou que, se existirem, são todos “malucos beleza”, como na música de Raul Seixas. Existem loucos perigosos, que precisam de tratamento e, em casos agudos, internação. Que não seja pela vida toda, em estabelecimentos deprimentes, sujeitos a todo tipo de maus tratos. Mas tampouco parece prudente mantê-los livres e soltos por aí, à espera de um “acidente” qualquer. Podem ser vítimas do abuso dos outros, por sua própria condição, ou colocar os outros em risco.

Será possível algum meio-termo nessa história? Análogo é o caso dos viciados em crack atualmente. Internação compulsória para tratamento, ou liberdade plena nas ruas para fumarem suas pedras e rodarem por aí feito zumbis? Não são questões fáceis, e desconfio de respostas muito enfáticas e definitivas. O buraco é mais embaixo, e quase sempre haverá um trade-off em jogo, valores conflitantes.

Não tenho as respostas. A luta antimanicomial conta com alguma simpatia minha, por ter servido para jogar luz sobre as trevas desses hospícios desumanos. Mas não consigo ir ao limite pregado por Foucault ou Szasz, de “liberar geral” e até mesmo suspender o critério minimamente objetivo acerca da existência da loucura. Isso, sim, parece coisa de maluco!

Prefiro pecar sempre pelo excesso de liberdade, não o contrário. Mas entendo que há casos bem claros em que a liberdade de uns ameaça a dos outros, e que nem sempre é desejável “pagar para ver”, esperar até que o louco destrua vidas inocentes para agir. Sem cair na paranóia do Minority Report, parece-me que diagnósticos mais precisos existem, e devem ser levados em conta, ainda que com obstáculos para dificultar seu abuso.

Há alguma razão na “loucura”, em doses leves. E há muita loucura na razão “absoluta”, nos Simões Bacamartes do mundo. Complicado é encontrar um bom equilíbrio de forças…

Rodrigo Constantino

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