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Consigo entender o apelo da narrativa: um grupo de patriotas honestos e corajosos desafia uma quadrilha criminosa comunista. Temos mocinhos de um lado, e vilões do outro, sem qualquer espaço para nuances. De forma geral, essa “luta de classes” não passa tão longe da verdade assim. Por exemplo: na Guerra Fria tínhamos mesmo um lado “do bem” lutando contra o lado “do mal”.

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O que não quer dizer, naturalmente, que o lado bom seja perfeito, isento de defeitos, ou que o lado ruim seja totalmente ruim, sem absolutamente nada que preste (no caso específico dos soviéticos era esse mesmo o caso). Em determinados casos, porém, a imparcialidade não pode ser confundida com ficar em cima do muro, sem tomar partido, sem escolher um dos lados.

Digo isso para mostrar que sou capaz de compreender a crítica aos “isentões”, aqueles que precisam estar sempre no meio do caminho, fazendo uma equivalência moral onde muitas vezes ela não há. Quem estava equidistante entre Estados Unidos e União Soviética naquela época não era independente, imparcial ou isento, mas sim idiota útil dos comunistas.

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A longa introdução foi para defender, contudo, a importância de buscar a independência, longe do maniqueísmo, e ser livre para tecer críticas mesmo ao lado que julga melhor, talvez muito melhor. Venho atacando faz tempo essa postura tribal por perceber nela um grande perigo para o país, para as possibilidades de se criar um chão comum no qual a maioria possa pisar para avançar em conjunto.

João Pereira Coutinho, em sua coluna de hoje, resenha um livro de uma turca sobre como se perder um país, ou uma democracia, em algumas etapas. “Segundo Temelkuran”, diz Coutinho, “essa viagem para as trevas começa com a criação de um movimento (como o partido AKP de Recep Tayyip Erdogan) que explora o ressentimento popular contra as elites (políticas, econômicas, midiáticas etc.) de forma a tribalizar a sociedade (nós versus eles)”.

Eis aí o tribalismo. E não quer dizer, claro, que a revolta popular seja desprovida de motivo. Coutinho explica: “Não que as massas —o ‘povo real’, para usar essa expressão equívoca— não tenham razões de queixa. Mas o movimento vitimiza as massas de uma forma histérica e irracional, aumentando as suas dores”.

Em seguida, Coutinho fala do “assalto à linguagem”, como Orwell já alertava em 1984. “No melhor capítulo do livro, Temelkuran vai listando o tipo de argumentos que os partidários de Erdogan usam contra os inimigos”, acrescenta Coutinho, listando as principais táticas de “debate”, como os argumentos “ad hominem”, quando é a pessoa a ser atacada, e não as suas ideias; os argumentos “ad ignorantiam”, em que algo é refutado (ou defendido) porque ninguém o conseguiu provar (ou refutar); e os argumentos “ad populum” —algo é verdadeiro porque muita gente acredita nisso, ponto final.

Por fim, segundo Coutinho, a autora recorda uma observação certíssima de Albert Camus: “Um homem com quem não se pode conversar é um homem a ser temido”. Muitas democracias atuais converteram-se nesse inferno de Camus: espaços onde ninguém fala com ninguém. Eis o que temos, então:

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Formado o movimento e a sua linguagem terrorista, há um assalto ao “sentido de decência” —o que era impensável e impronunciável por razões de civilidade é agora dito, repetido e normalizado.

Uma vez no poder, o movimento derruba os mecanismos judiciais e políticos que sustentam a democracia liberal (controle dos juízes; sabotagem de partidos rivais; eleições fraudulentas etc.).

Finalmente, e em plena consonância com experiências ditatoriais ocorridas no passado, o novo regime cria um “cidadão novo” (os “cidadãos velhos” não têm vez) e até um “país novo” (sobre os escombros do antigo). Assim, e nas palavras da autora, “a alma de um país é alterada irrevogavelmente quando ele repudia os seus cidadãos”.

O resumo da coisa é tão antigo quanto a sociedade humana: “Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos”. Jogar uns contra os outros, impedir qualquer possibilidade de divergência ou crítica construtiva, demandar adesão plena ou aceitar que será um inimigo mortal: o petismo sempre abusou dessa estratégia, e é inegável que uma ala do bolsonarismo faz o mesmo.

Foi tema de artigo do José Padilha na Folha hoje também. Tenho muitas divergências com o autor de “O Mecanismo”, simpático demais ao PSOL para o meu gosto, mas preciso reconhecer que ele toca num ponto importante aqui, ao atacar as “manadas de WhatsApp” e defender o pensamento independente:

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No que tange à honestidade intelectual, a direita pró-Bolsonaro e a esquerda pró-Lula se tornaram irmãs siamesas: nunca mudam de opinião.

Não admitem a falibilidade de seus intelectos porque não satisfazem a definição do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Não são pensadores, são membros de comunidades de ideias, de grupos de WhatsApp onde identidade tribal é critério de verdade.

Considere, leitor, os seguintes enunciados: 1 – a violência policial é um problema no Brasil; 2 – não deve haver uma reforma da Previdência; 3 – todos os atos de Moro na Lava Jato foram nefastos; 4 – Dilma e Lula são honestos; 5 – não pode haver privatizações; 6 – prisão em segunda instância é cercear o direito de defesa; 7 – o mensalão não existiu; 8 – a liberdade sexual é um direito individual; 9 – a maconha deve ser legalizada; e 10 – o impeachment foi um golpe.

A esquerda petista acredita em todos os enunciados acima. Já a direita bolsonarista não acredita em nenhum. Note, entretanto, que não há conexão lógica entre esses enunciados. A aceitação de um não implica a de outros. 

Vejamos o caso que está na pauta do dia, o vazamento das conversas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Diante do poder e do cinismo da bandidagem eufórica com o vazamento, gente inescrupulosa que já tenta transformar Moro no bandido e Lula na vítima, é tentador demais aderir ao maniqueísmo: hashtag “EstouComMoro”, ou declarações de apoio irrestrito e confiança total no ministro. Sabemos com quem estamos lidando e do que são capazes…

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Mas qualquer um que faça críticas ou mesmo questionamentos sobre eventuais desvios ou excessos da Lava Jato é automaticamente defender de bandido, petista? Muita calma nessa hora! Nenhum ser humano é infalível, e é preciso tomar muito cuidado ao criar mitos e heróis de carne e osso, pois todos podem falhar.

Entendo, repito pela milésima vez, a preocupação legítima que muitos têm com o uso que a esquerda hipócrita fará com toda crítica do lado de cá. Compreendo a angústia com uma postura que pode parecer muito “isenta”, sem admitir de onde vem o real perigo, ou equiparando a quadrilha petista aos responsáveis por debela-la, ainda que possam ter cometido desvios legais no processo.

Mas meu foco é o clima de divisão tribal que vem sendo disseminado no país desde os tempos petistas, e alimentado agora pelo bolsonarismo radical. Essa cisão cada vez maior, que só enxerga aliados incondicionais ou inimigos mortais, representa a morte do diálogo, de qualquer chance de contemporização ou acordo, e dessa forma da própria democracia. É por isso que Carlos Andreazza chama a atenção, em sua coluna de hoje, para o conceito totalitário de democracia do bolsonarismo:

Na origem dessa visão de mundo jacobinista influente, claro, está o desprezo pela atividade política e, logo, o entendimento da democracia representativa como entrave burocrático ao avanço do país: o Congresso compreendido como ameaça, a encarnação do establishment, a máquina defensora de interesses corporativos, não raro tratada como sindicato do crime, que operaria para inviabilizar os compromissos de campanha — espécie de imperativo divino inquestionável — assumidos por Bolsonaro.

[…]

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Voltemos, pois, à democracia segundo Bolsonaro: aquela cuja plenitude dependeria de a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população. Parece bonito. Vende desapego. É sedutor. Mas: que “população” seria essa? Melhor: o que seria “população”? Essa pergunta precisa ser enfrentada à luz de um sistema de credos que vilipendia mediações e que tem centro num mito anabolizado por delegação celestial e com ambições de falar diretamente ao rebanho. Mais: o que seria uma afinação perfeita? Essa indagação precisa ser encarada sem que se perca de vista que o ímpeto de mobilização popular tem a atividade política como prática delinquente — algo só controlável sob pressão e medo.

[…]

A fala do presidente exprime uma visão totalitária; uma abordagem que, a rigor, mais do que confundir povo com governante popular, anula essa diferença, suprime mesmo o valor impessoal de representação, para fazer emergir o governante, o ungido, que é a população — a população que é o governante. Daí por que convido o leitor a refletir sobre se a definição “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população” não poderia ser substituída, para benefício de seu peso real, por “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios do governante”. Que tal?

Não por acaso escrevi vários textos sobre meu receio com todo aquele que busca monopolizar os desejos do “povo”. Andreazza toca num ponto relevante, que não deve ser ignorado. E o problema é que, de fato, havia mesmo uma quadrilha infiltrada na política, com tentáculos em várias esferas e instituições, e que agora luta para impedir o combate à corrupção. A tese tangencia a verdade!

O diabo, porém, está nos detalhes. Ao assumir que um lado, o bolsonarismo, representa o imaculado “povo do bem” contra todos os vários inimigos da nação, essa turma rejeita qualquer espaço para críticas, correções de falhas eventuais e baixa a guarda para riscos autoritários e populistas.

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É perfeitamente possível defender Moro com forte admiração pelo que se conhece até aqui, criticar sua ida para o governo, cobrar maiores explicações sobre as conversas vazadas, compreender que os inimigos são poderosos, cínicos e dispostos a tudo para manter a impunidade, repudiar os discursos canalhas da esquerda, defender a reforma previdenciária, elogiar várias medidas do governo Bolsonaro, mas temer a postura tribal de ala do bolsonarismo.

Acredito, com otimismo, que essa postura seja majoritária na direita, que a sensatez ainda não desapareceu de vez, dando lugar ao fanatismo divisório que enxerga guerra de vida ou morte por todo canto. Mesmo na Guerra Fria caberia respeitar quem criticasse coisas pontuais dos americanos, sem cair na besteira de defender os soviéticos. Só que a vida democrática não pode ser como uma Guerra Fria permanente. Isso tornaria a própria sobrevivência da democracia impossível.

Rodrigo Constantino