Passei o meu terceiro aniversário nos Estados Unidos. A data é muito especial por aqui. Afinal, sou nascido em 4 de julho, o dia a Independência Americana. O show de patriotismo é surpreendente, em especial para quem vem do Brasil. Nosso 7 de setembro é um tanto burocrático, sem muita emoção, com cerimônias oficiais enaltecendo o Estado. Na América não é nada assim. É a maior festa do ano, com famílias saindo às ruas com suas bandeiras, celebrando a grande nação que seus antepassados construíram.
O orgulho do americano médio com sua pátria é visível. E não é para menos: trata-se de um país próspero e que vem preservando as liberdades individuais ao longo dos anos, apesar dos constantes ataques que sofre de dentro e de fora. Se o Iluminismo francês celebrava a razão, e o britânico a virtude social, então o americano representava a política da liberdade, como resumiu a historiadora Gertrude Himmelfarb. Uma mistura interessante, com os pais fundadores mais racionalistas e libertários lutando por “direitos naturais” e a prudência e a moderação do lado mais conservador.
A combinação deu certo, aparentemente. Os próprios fundadores sabiam, porém, que não seria fácil preservar uma República livre, e temiam que a democracia se transformasse numa ditadura da maioria, sob a influência de demagogos. Por isso adotaram instrumentos de proteção, como o federalismo para descentralizar o poder, os mecanismos de pesos e contrapesos, o voto distrital, uma população armada, etc. O objetivo sempre foi proteger o cidadão do Estado, visto com desconfiança. Os pais fundadores sabiam que a concentração de poder no governo era o caminho mais rápido para a tirania.
Foi impossível impedir certo avanço do governo, e exemplos de abusos não faltam. A era Obama foi marcada por uma tentativa de mudança de paradigma, e o próprio presidente democrata dizia abertamente que desejava mudar a América “essencialmente”. Mas não conseguiu. O estrago não foi pequeno, mas o foco na meritocracia e na liberdade individual prevaleceu, mesmo que cambaleante. Apesar do politicamente correto e do coletivismo, o americano médio ainda enxerga o assistencialismo estatal ou a igualdade de resultados como problemas e cobra responsabilidade individual de todos por seus atos, reconhecendo que a desigualdade de resultados será inevitável com pessoas diferentes.
Timothy Snyder, em On Tyranny, apresenta vinte lições sobre experiências ditatoriais tanto comunistas como fascistas. Para o autor, a América corre perigo hoje com o governo Trump. É fato que o atual presidente lançou mão de táticas demagogas para chegar ao poder, mas Snyder ignora em seu livro que boa parte do que Trump condena, tanto na imprensa como no governo, é mesmo condenável. O viés do “jornalismo” é escancarado, e “drenar o pântano” em Washington é uma necessidade para salvar os Estados Unidos de um destino latino-americano, onde o “capitalismo de compadres” destruiu o livre mercado.
Ou seja, Trump pode ter adotado um estilo um tanto personalista e fanfarrão, semelhante ao de líderes populistas, mas o que ele veio combater deve ser combatido. O que evitará caminhos mais perigosos não é tanto a bondade do presidente, mas as instituições republicanas. É esse o ponto que precisa ser lembrado: mesmo um líder autoritário e populista como Lula não teria o caminho tão livre na América como teve no Brasil para avançar sobre as instituições, aparelhando a máquina estatal com seus subordinados ou comprando a oposição e a imprensa, sob a negligência passiva da população. Nos States o buraco é mais embaixo.
O que me traz ao tema central desse artigo: a baixa receptividade que a democracia liberal encontra em nosso país. Nossa “república” não só começou com um golpe, como teve vários outros no caminho. Tivemos poucos espasmos democráticos em meio a vários governos autoritários ou ditatoriais. E o pior: essas experiências democráticas foram ruins, via de regra.
A esquerda, como sabemos, nunca teve mesmo muita simpatia pela democracia. Para ela, ao menos na versão mais radical, tudo não passa de uma farsa para a tomada do poder. Jacobinos revolucionários querem criar o “novo mundo”, e não se importam com “detalhes” como o império das leis ou a alternância de poder, já que a única coisa que interessa é o radiante fim que nos espera. O que são algumas cabeças degoladas nesse processo?
À direita há uma turma que rejeita também a democracia imperfeita, suas necessárias contemporizações, as negociações com adversários, etc. São saudosistas de um passado idealizado, onde tudo era muito diferente e melhor e estão dispostos a passar por cima de quem estiver no caminho para resgatar esse mundo ilusório. Tais reacionários adotam métodos muito parecidos aos dos petistas que odeiam. Muitos inclusive vieram da extrema-esquerda, preservando o estilo e mudando apenas o conteúdo. Escolheram um novo messias para idolatrar, mas continuam idólatras, praticando culto à personalidade e desdenhando da própria democracia.
Construir instituições republicanas não é tarefa fácil, como a experiência global pode atestar. É a exceção, não a regra. Exige paciência, visão de longo prazo, maturidade, esforço coletivo e, acima de tudo, espírito cívico, especialmente das elites. Não combina com a Lei de Gérson, com o jeitinho e a cultura da malandragem, ou com o hedonismo de quem quer tudo para ontem e dane-se o amanhã. Os brasileiros estão desiludidos com a democracia e não é para menos. Se esse é o seu resultado, então não há muito como defendê-la mesmo.
Mas eis o recado: a desgraça petista foi um atentado contra a democracia, ainda que tenha feito uso dela. A solução não é jogar o bebê fora junto com a água suja do banho. Não é buscar um salvador da Pátria autoritário que fale grosso e queira desafiar todos, ameaçando até fechar o Congresso se preciso. Já experimentamos essas rotas de fuga, e nunca acabou bem.
Artigo originalmente publicado na versão impressa da Gazeta do Povo
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