Por Leonardo Correa, publicado pelo Instituto Liberal
Acabei de assistir ao documentário, do Brasil Paralelo, intitulado “1964 – Brasil entre armas e livros”. O filme gerou polêmica. A Rede Cinemark, que realizou a pré-estreia, após rebuliço midiático, lançou um comunicado informando que “não se envolve em questões político-partidárias”, atribuindo a exibição a um “erro de procedimento em função do desconhecimento prévio do tema, acabou permitindo o acontecimento”.
Não pretendo entrar no mérito da conduta estrita do Cinemark. Afinal de contas, a Rede deve ter o direito de exibir em suas salas – propriedade privada – o que bem entender. O problema está na justificativa, e no fato de voltar atrás diante de pressões. O homem é um ser político, então é difícil justificar a exibição ou não de um longa metragem por essa razão. A política faz parte dos indivíduos. Mas deixemos essa questão de lado por um momento. Voltemos ao filme.
Como disse, acabei de assistir e, portanto, minha memória está vívida. O documentário faz críticas de ambos os lados. E os entrevistados repetem ostensivamente que 1964 foi um golpe – como, aliás, não poderia deixar de ser. Minha impressão é que há uma nítida tentativa de imparcialidade, que, por óbvio, não é absoluta. Diga-se de passagem, nunca vi um imparcial absoluto. Se alguém encontrar um, me avise. Saliento, no entanto, que nas partes finais onde são ligados os pontos entre passado e presente, há um certo direcionamento sutil. Mostram-se o PT e suas condenações; faltou, a meu ver, apresentar outros reflexos daninhos, configurados, a meu ver, nesse populismo perverso de Pindorama. De resto, frise-se, o documentário condena os dois lados do embate pseudo-ideológico que o país experimentou.
O Brasil não está nem à direita nem à esquerda, continuamos um país de “salvadores da pátria” e “mitos”. Ainda não reconciliamos a nossa história, de modo a enxergarmos que vivemos uma perpetuação do patrimonialismo autoritário e centralizador. Os dois lados do espectro político querem apenas uma coisa: poder. Para estes, a democracia continua sendo um entrave – um empecilho – para soluções messiânicas. O Brasil, apesar de influências culturais externas, continua provinciano e ignaro. Racionalizamos tudo em posições ocas, com um quê de futebolismo ideológico. Se você veste a camisa do meu time, estamos juntos. O que você pensa, não importa.
Olhamos para os rótulos, mas não nos importamos com o que está dentro. Simplificamos o pensamento em meras correlações de acaso, de modo que aderir a determinada linha de pensamento seja um automatismo perverso ao invés de um exercício de reflexão. Tudo que não se quer é um país pensante. Essa foi, a meu ver, a consequência mais perversa de 1964 em diante. Caminhamos, a passos largos, desde o golpe até os dias de hoje, para a consciência Nescafé – instantânea, rala e sem um gosto marcante.
Tal circunstância, contudo, não foi culpa apenas dos militares, nem, tampouco, somente dos seus opositores. Foi culpa de ambos. A transformação de uma sociedade minimamente crítica em autômatos reducionistas é um trabalho de décadas e exige o esforço e o empenho de diversos agentes. É possível enxergar esse quadro no documentário, ele apenas não é explicitado ao final. Mas está lá. Basta assistir com mente aberta e visão crítica.
Dito isso, volto às razões do Cinemark. Primeiramente, a rede aceitou fazer a pré-estreia e, em seguida – após a grita de quem não viu e não gostou –, volta atrás e faz uma retratação. Pois bem. Em um texto que escrevi ao Conjur, fiz uma firme defesa da liberdade de expressão no caso do Queermuseum. E, claro, não poderia ser diferente aqui. Reafirmo que o Banco Santander tinha todo o direito de patrocinar a referida exposição. Digo mais, admiro a firmeza da Instituição Financeira em não abrir mão de sua liberdade de expressão. Lamento, contudo, a postura do Cinemark. Devia ter feito o mesmo e, inclusive, exibir o filme em suas salas após o imbróglio.
Repito aqui, a fundamentação – com pequenos ajustes – de minha crítica aos que tentaram censurar a Exposição Queermuseum. Vocês verão que se encaixa perfeitamente ao caso. Vamos lá:
A questão fundamental, a meu ver, é de princípio. Nossa constituição, em seu artigo 5º, inciso IX, estabelece o seguinte: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. Logo, a nossa carta magna defende a Liberdade de Expressão.
Pois bem. Para reflexão, gostaria, inicialmente, de traçar um paralelo com o entendimento americano sobre Liberdade de Expressão. Recentemente, a Suprema Corte americana julgou o caso MATAL v. TAM, 582 U. S. (2017), que tratou da Primeira Emenda à Constituição Americana, a qual dispõe: “O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas”.
Ao interpretar o texto constitucional americano, em seu voto vencedor, o justice Samuel Alito reafirmou o entendimento de que “a Primeira Emenda proíbe o Congresso e outras entidades governamentais e demais pessoas de ‘reduzir a liberdade de expressão’”. Na sequência, há uma frase bem incisiva: “nós já dissemos por diversas vezes que ‘a expressão pública de ideias não deve ser proibida apenas porque as ideias, por si sós, sejam ofensivas a alguns’”.
A opinion, do justice Alito faz referência ao seguinte trecho do caso Texas v. Johnson, 491 U. S. 397, 414 (1989): “se existe um princípio fundamental para a Primeira Emenda, é que o governo não pode proibir a expressão de uma idéia simplesmente porque a sociedade considera a própria idéia ofensiva ou desagradável”. Vale ressaltar, nesse passo, que Alito foi acompanhado pelo chief justice John Roberts e pelos justices Clarence Thomas e Stephen Breyer.
Os Estados Unidos possuem a democracia mais longeva que conhecemos, e, seguindo os pressupostos dos Fouding Fathers, defende ardorosamente a Liberdade de Expressão. O Brasil, contudo, adotou uma postura sobre a matéria menos liberal — no sentido clássico do termo. Por aqui, há uma tendência para seguir o caminho da ponderação de princípios e valores. Em parte, nos alinhamos a orientação do justice Kennedy, apresentada — por escrito — na decisão do caso citado acima: “uma lei que pode ser dirigida contra a fala achada ofensiva a alguma parte do público pode ser voltada contra opiniões minoritárias e dissidentes em detrimento de todas. A Primeira Emenda não confia esse poder à benevolência do governo. Em vez disso, nossa confiança deve ser sobre as salvaguardas substanciais de discussão livre e aberta em uma sociedade democrática”.
Noutros termos, na visão dos justices Anthony Kennedy, Ruth Ginsburg, Sonia Sotomayor e Elena Kagan (essas últimas três acompanharam o voto de Kennedy), há possibilidade de legislação para coibir o discurso considerado ofensivo “contra opiniões minoritárias e dissidentes em detrimento de todas”. Ou seja, admitem a ponderação de princípios, colocando a Liberdade de Expressão ao alvitre de algum poder. E, por via de consequência, talvez sejam capazes de admitir restrições a essa liberdade por indivíduos. Aguardemos as próximas decisões sobre o tema.
Diferente desse posicionamento, o voto condutor, portanto, está alinhado com uma frase clássica de Benjamin Franklin: “a liberdade de expressão é um pilar principal de um governo livre: quando esse apoio é retirado, a constituição de uma sociedade livre é dissolvida”. Na mesma esteira, nada como recorrer a Thomas Jefferson: “se me deixassem decidir se deveríamos ter um governo sem jornais, ou jornais sem um governo, não deveria hesitar um momento para preferir o último”. Por fim, vale mencionar o pensamento de um gigante do Direito americano, Benjamin N. Cardozo, que foi Justice da Suprema Corte: “daquela liberdade [do pensamento e da fala] pode-se dizer que é a matriz, a condição indispensável, de quase todas as outras formas de liberdade”.
Então, nos embates sobre a Liberdade de Expressão, acredito que o melhor caminho — sob o aspecto filosófico — é o da Suprema Corte americana, que se baseia nos conceitos tão bem cunhados pelos Founding Fathers.
Concluindo, não acho que a postura do Cinemark e demais tenha sido apropriada. Ao invés de censurar o filme, deveria tê-lo exibido para que os indivíduos realizassem os seus julgamentos livremente. O Brasil precisa disso. De pessoas debatendo, concordando e discordando. Mas fazendo isso com relação ao conteúdo e não ao rótulo. Só teremos uma sociedade livre quando se dê voz a ideias contrárias de forma ampla. Esse é o único caminho para sairmos do reducionismo perverso que nos assombra desde 1964.