Já comentei aqui a choradeira da CNN por conta da decisão de se aposentar do juiz Anthony Kennedy, abrindo espaço para nova indicação de Trump para a Suprema Corte. Volto ao assunto por causa do editorial de hoje do jornal O GLOBO, que fala em “risco à democracia” e “autoritarismo” com a mudança, sem perceber de onde vem o real risco à democracia e o viés autoritário. Diz o jornal:
Não que o juiz Kennedy seja um progressista exemplar. Indicado pelo ex-presidente Ronald Reagan, ele honrou a confiança republicana em várias ocasiões, demonstrando um pendor conservador, inclusive em questões polêmicas, como o direito ao porte de armas de fogo. Porém em assuntos relacionados a ações afirmativas, direitos gays, aborto e pena de morte, ele demonstrou possuir um espírito aberto, acompanhando os votos dos juízes progressistas. Por isso, Kennedy é considerado o fiel da balança que mantinha um relativo equilíbrio no mais alto tribunal americano.
Os responsáveis pelo texto atacam em sua conclusão “uma Corte cooptada ideologicamente”, o que seria “enfraquecer o papel do Poder Judiciário americano como instituição que compõe os pesos e contrapesos do sistema democrático”. Mas, ironicamente, os autores não notam o seu próprio viés ideológico. Ou seja, para eles, só um juiz “progressista”, a favor do aborto, do casamento gay e contra as armas de fogo, seria um juiz aceitável, “imparcial”, “democrático”.
O jornal carioca tem claro viés “progressista”, e até aí tudo bem: é direito seu. O que já incomoda é ele se vender como imparcial ou neutro ideologicamente, o que é absurdo. Pior ainda é ser “acusado” pela extrema esquerda de “direitista”, o que é simplesmente patético, e uma tática que acaba funcionando ao colocar o veículo na defensiva, tendo que sinalizar cada vez mais à esquerda para ser “aceito” pelos radicais socialistas.
A primeira indicação de Trump, Neil Gorsuch, não teve absolutamente nada de extremista, ultraconservador ou algo do tipo. Trata-se de um renomado juiz, respeitado por seus pares, sério, que adota uma postura “originalista”, ou seja, defende a Constituição como é e aceita as intenções dos “pais fundadores”. Se é preciso alterar algo na Carta Magna, que o devido processo legal seja cumprido, conforme o previsto.
Isso já é visto como “ultraconservador” pelos “progressistas”, que gostariam de ver uma Suprema Corte legislando, ainda que sem votos e rasgando a própria Constituição, da qual deveria ser a guardiã. Esse ativismo judicial é um câncer, e sabemos bem disso no Brasil. Mas os “progressistas” acham que autoritários são os que pretendem justamente impedir tal abuso de poder, resguardando a função da Corte.
Os esquerdistas colocam sua pauta impopular acima do império das leis, e por não terem votos suficientes para mudar as regras pelas vias democráticas, querem ganhar no tapetão. Já que Marcelo Freixo não é eleito, já que Bernie Sanders perde no pleito, então querem usar a Suprema Corte para mexer nas leis. O editorial não esconde suas preferências esquerdistas:
As implicações de uma Suprema Corte ultraconservadora são gravíssimas. A começar pelo fato de que os cargos são vitalícios, o que significa que Trump deixará como legado, e por várias gerações, um tribunal resistente a propostas progressistas na sociedade americana, como a liberação do aborto em casos específicos e o uso recreativo da maconha.
Gravíssimo é o desrespeito à Constituição, a mistura entre funções dos diferentes poderes, usando o judiciário para invadir a seara do legislativo. Gravíssimo é considerar que é coisa de “ultraconservador” defender a Constituição, ou mesmo ser contra a legalização do aborto e das drogas. Mas eis a visão de mundo ideológica predominante em nossa mídia, infelizmente.
O autoritarismo, como fica claro, está bem mais nessa esquerda “progressista”, que não tolera as regras democráticas do jogo, do que nos republicanos conservadores, que respeitam a Constituição. Curiosamente, o mesmo jornal, em seu outro editorial, parece compreender o perigo de uma Suprema Corte arbitrária, ao criticar a decisão esdrúxula do ministro Lewandowski sobre privatizações, que chamou de “desinformadas” em vez de ideológicas:
A liminar concedida pelo ministro do Supremo Ricardo Lewandowski, subordinando qualquer privatização de estatal controlada pela União ao Congresso, pode ser vista por alguns ângulos. Dois deles: o da ingerência do Judiciário no espaço administrativo do Executivo — embora, de fato, tudo possa ser reclamado aos tribunais — e o da tomada de decisões por juízes sem que sejam levados em conta reflexos negativos na própria economia, causando perda de renda na sociedade, com menos investimentos e consequente desemprego. Neste caso da liminar concedida no Supremo, e às vésperas do recesso do Judiciário, há o agravante de que a Constituição dá prioridade à iniciativa privada, ficando o Estado com um papel subsidiário.
[…]
Infelizmente, continua a existir a ideia equivocada, de panfletos político-partidários, de que as estatais são do “povo”. Na verdade, trata-se de patrimônio do Tesouro que pode ou não ser usado em favor da sociedade. Mas, na vida real, são exploradas por corporações sindicais, com apoio de partidos, para obter privilégios, pagos, mais à frente, pelo contribuinte, no aumento de capital dessas empresas.
Não deixa de ser espantoso comparar o bom senso desse editorial com o ataque puramente ideológico e irracional a Trump no outro. O risco de arbítrio ideológico é apontado neste, ao falar da ingerência do Judiciário no espaço do Executivo, mas ignorado naquele, ao pregar uma Suprema Corte “progressista” que legisla sobre aborto, drogas e armas, ao gosto político do jornal. Critica Lewandowski no nosso STF, mas defende um Barroso na Suprema Corte americana?
Não seria mais coerente e adequado defender uma Suprema Corte efetivamente isenta e responsável apenas por garantir o aspecto constitucional das leis?
Rodrigo Constantino
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