Numa época do ano em que as pessoas querem amenidades ou votos de esperança, para relaxar um pouco do ano puxado que passou, o filósofo Luiz Felipe Pondé vai à contramão e mete o dedão na ferida narcísica da humanidade, fazendo jus ao seu livro Filosofia para Corajosos. Talvez a covardia seja mesmo o grande mal moderno, ao lado do narcisismo (e ambos se alimentam mutuamente). Em sua coluna de hoje na Folha, Pondé constata que esse narcisismo exacerbado é suicida:
Vivemos um momento suicida. O projeto contemporâneo é realizarmos todos os nossos desejos sozinhos e deixar como herança três latas de lixo reciclável como prova de que nosso suicídio foi sustentável. A espécie optou pelo suicídio como forma de felicidade. Que viva o indivíduo, mas desapareça a espécie. Sim, digo isso com votos de feliz ano novo.
[…] O vazio de afeto como um exemplo tardio de direitos humanos. Nunca desconfiamos tanto uns dos outros como nessa era dos “coletivos de arte”.
[…] Fincado na ideia de que o centro da vida é a realização de projetos individuais sem limites no mundo real, o cidadão do narcisismo assume que seu imaginário pessoal é o propósito cósmico da Criação –aviso aos inteligentinhos que uso “Criação” como metáfora aqui.
Engana-se quem pensa que ele não tenha uma política. Ele tem. A política da negação de qualquer constrangimento do desejo. Engana-se quem acredita que ele não tenha projetos sociais. Principalmente aqueles que servem à própria vaidade sem oferecer qualquer forma de risco concreto, como apoiar os refugiados sírios na Europa, uma vez que esses refugiados não morarão na casa dos cidadãos do narcisismo. Cidadãos do narcisismo adoram crianças da África, principalmente porque estão longe delas.
[…] A ética do cidadão do narcisismo tem seu imperativo categórico cunhado no culto da forma do eu e do corpo, jamais na condição de quem se perde num afeto. Aliás, a afetividade desse cidadão é chorar com os próprios bons sentimentos.
[…] Há psicanalista por aí que afirma mesmo que esse cidadão é um avanço, na medida em que não sofre do imaginário de amor que o neurótico sofria. O cidadão livre do contrato narcísico não ama. Superou esta forma primitiva de neurose em favor da circulação livre de afetos desconexos. Por isso é tão sensível aos animais, que nunca põem em xeque o amor.
Ouch! Na linha dos textos de Pondé, recomendo aos corajosos a série “Black Mirror” da Netflix. Mostra, como o nome já diz, um espelho ao telespectador, mas um espelho que reflete não aquela imagem de bonzinho que seu narcisismo criou, e sim a alma sombria oculta, escondida atrás desse manto de hipocrisia. Vemos naqueles episódios impactantes o que o ser humano é e tenta esconder de si mesmo, e vemos como as tecnologias modernas têm ajudado no grau de alienação.
Que em 2017 mais gente possa sair da bolha imaginária e tocar no real, enfrentando a covardia e o narcisismo fora de controle que tem sido mesmo a marca da nossa época. Amar é complicado, pois há sempre o risco de decepção. Mas a alternativa é muito pior. E chamar a isso, a esse “descolamento” crescente, de progresso é simplesmente desconhecer a natureza humana, ignorar séculos de alertas por parte daqueles que viveram antes de nós e acumularam ampla sabedoria nas tradições, nos tabus, nos costumes que hoje precisam ser descartados e rejeitados por gente mimada e infantil, que pensa estar se “libertando” ao agir assim. Ledo engano…
Rodrigo Constantino
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