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Nem numa guerra se cruzam certos limites: Bolsonaro deve desculpas ao presidente da OAB

O presidente Jair Bolsonaro disse que pode explicar como o pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, desapareceu na ditadura. A fala ocorreu durante comentário de Bolsonaro sobre o desfecho do caso Adélio Bispo, autor do atentado contra ele na campanha eleitoral, ao reclamar da atuação da instituição em relação ao advogado do acusado.

“Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”, disse Bolsonaro, segundo a Folha de S.Paulo. O presidente da OAB é filho de Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira, desaparecido em fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro.

Após a fala infeliz, o presidente tentou justificar a fala por meio da internet, em uma live enquanto cortava o cabelo, num ato que acrescentou insulto à injúria:

“O pai do Santa Cruz integrava Ação Popular de Recife, o grupo mais sanguinário que tinha, e esse pessoal tinha ramificações pelo Brasil, no Rio de Janeiro. O pai dele veio para o Rio de Janeiro, e o pessoal da AP resolveu sumir com o pai do Santa Cruz. É essa a informação que eu tive na época”, afirmou.

Se teve informação privilegiada, deve explicações oficiais. Bolsonaro prosseguiu com sua versão de como o pai do presidente da OAB morreu: “Não foram os militares que mataram, não. É muito fácil culpar os militares. Ele (Santa Cruz) está equivocado em acreditar em uma versão só dos fatos.”

Devo ter uns mil artigos contra a OAB, que chamo de Ordem dos Advogados Bolivarianos. Seu presidente é comuna mesmo, petista. MAS… isso não justifica o presidente dizer o que disse. Ou temos padrões morais, ou somos como nossos adversários. Decência Já! O conservadorismo de boa estirpe prega isso.

O grande problema que vejo na direita nacional-populista é usarem a régua “moral” do inimigo. Acham que liberais e conservadores são “covardes”, “frouxos”, “isentões”, pois exigem decência do lado de cá, usam uma régua diferente, acima da esquerda. Os reacionários querem se nivelar pelo PT, o que é um padrão extremamente baixo, convenhamos.

Uma leitora perguntou se os limites devem servir apenas para um lado. Ora, então quer dizer que ambos os lados devem ser igualmente indecentes? Se a direita pretende ser melhor do que a esquerda, claro que ela deve se pautar por critérios morais mais rígidos e elevados!

Do presidente petista da OAB eu não espero nada decente, e não adianta apontarem as falas lamentáveis dele. É preciso entender de uma vez que esta não pode ser a régua da direita, muito menos do presidente da República! Quem justifica a boçalidade do presidente porque o outro lado é escroque não percebe que é escroque também?

Decência não tem ideologia. Mil vezes um social-democrata civilizado do que um boçal de “direita” que acha legal zombar de alguém que perdeu o pai quando tinha dois anos sem conhecer seu paradeiro só porque se trata de um adversário político. Cruzar essa fronteira é o fim da picada!

O mea culpa dos liberais de que ajudamos a criar um monstro precisa ser contextualizada. A ameaça era um monstro muito pior. O que não justifica a covardia hoje, que toscos com perfil autoritário acham legal agir como os monstros que derrotamos. A luta continua…

É preciso frisar com todas as letras que certas fronteiras não podem ser cruzadas, nem mesmo numa guerra! Eis o risco, aliás, dessa premissa de guerra cultural, como se a ameaça comunista fosse uma constante para o Brasil: ela acaba justificando todo tipo de comportamento inaceitável. Mesmo em guerra há limites.

A desumanização do adversário pode ser útil para a máquina mortífera durante um combate de vida ou morte, mas é um perigo para a democracia. Escrevi uma resenha sobre um ótimo livro sobre o assunto, mostrando como esse caminho é perigoso. Na ocasião, concluí com esse trecho que merece maior reflexão nos dias de hoje em nosso país, dominado por uma polarização exacerbada:

Apontemos os erros, os absurdos de nossos adversários. Reconheçamos a monstruosidade de certas ideologias. Ataquemos o comunismo, o socialismo, o nacional-socialismo, o fascismo, o radicalismo islâmico. Mas tomemos o cuidado de não transformarmos seus seguidores em bichos sub-humanos, que precisam ser exterminados. São, apesar de tudo, seres humanos. Apesar de, no mundo moderno que muitos deles ajudaram a criar, talvez seja mais valioso ser considerado um animal mesmo, já que seres humanos estão em baixa na escala de valores.

Nada justifica, portanto, a insensibilidade do presidente. Por mais que eu abomine a posição ideológica do presidente da OAB, isso não deve entrar em questão quando o assunto é uma criancinha de dois anos que vê seu pai sumir sem saber qual o destino. O presidente Bolsonaro deveria pedir desculpas ao presidente da OAB, sem rodeios. Em nome da decência!

Por fim, vale destacar que, mesmo pelo pragmatismo, a estratégia é péssima. Pode até mobilizar a militância fanática, que passa pano em tudo que o presidente faz ou diz, mas só afasta os mais moderados e transforma o presidente da OAB em vítima. A quem interessa esticar tanto a corda da polarização no país? Talvez ao Bolsonaro candidato. Mas hoje ele é o presidente de todo o Brasil, não custa lembrar…

Rodrigo Constantino

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