Então as manifestações a favor do governo Bolsonaro foram um sucesso de público? Legal. Quantos estavam nas ruas? Um quarto de milhão? É um número expressivo. Não pode ser ignorado. É um apoio importante ao presidente. Tudo isso é verdade. Mas calma! Não é “o povo”, como os mais assanhados já repetem nas redes sociais. Ou por outra: é parte do povo, como eram aqueles que estavam protestando contra o governo com o pretexto do corte da educação.
É preciso tomar muito cuidado com quem tenta monopolizar os interesses do povo. Essa é a própria definição do populismo, não só oferecer migalhas ou benesses, mas falar como se representasse todo o “povo”, ignorando a complexidade da política real. Na prática, o povo é heterogêneo, assim como seus anseios são voláteis e contraditórios. O “povo” pode querer mais estado de bem-estar social com menos impostos, por exemplo.
Quando o assessor do governo no Itamaraty, Filipe G. Martins, escreve esse comentário em seu Twitter, portanto, todo liberal tem direito de ter calafrios com o tom populista e coletivista: “O povo não ameaça a democracia nem o império da lei, apenas luta para ocupar o papel que lhe pertence em um regime efetivamente democrático e reivindicar o papel central que a Constituição lhe atribui quando declara que ‘todo o poder emana do povo’. Não dá mais para ignorá-lo”.
Agora a parte fala pelo todo? Dezenas de milhares nas ruas resumiram o “povo” e possuem procuração dos demais 200 milhões? Estou lendo um romance interessante de Suzana Mag, chamado Retorno a 64, que se passa no ambiente caótico que antecedeu o contragolpe militar. Um dos personagens, que participa as reuniões da UNE, mas que desdenha do fervor revolucionário dos jovens burgueses, comenta:
“Fala-se muito do povo, uma palavra forte, quase sacramental. Para mim, o povo não inclui somente os mais pobres, os mendigos, os operários, que a esquerda considera a classe verdadeiramente revolucionária… Inclui também os humildes trabalhadores que voltam para o subúrbio depois de uma jornada cansativa de trabalho no comércio, os padres, as prostitutas, os pequenos funcionários públicos. O que será deles com a Revolução? Eles a querem verdadeiramente? Estou falando das pessoas comuns, e não dos ativistas”.
O mesmo alerta que vale para comunistas vale para reacionários coletivistas, para todo aquele que jura falar em nome do povo. Normalmente são ativistas que pouco contato têm com o “povo” real. Conheço alguns com esse perfil: são nerds, introspectivos, de classe média alta, e adotaram um discurso radical em prol da “guerra cultural” do conforto de suas casas ou escritórios, vendo-se no espelho como guerreiros templários numa cruzada para salvar a civilização. Eis aí o “povo”!
O primeiro sinal de amadurecimento em política é reconhecer que não há algo como “o povo”, dessa forma monolítica e coesa, e mais importante ainda: que ninguém, absolutamente ninguém deve falar em nome do povo, muito menos achar que personifica seus desejos e interesses. Aceitar a complexidade do mundo real deveria ser o primeiro passo de um adulto conservador. A alternativa é bancar o revolucionário utópico que jura monopolizar os sonhos do povo…
PS: Mais honesto e correto do que falar em “vontade do povo” seria falar em “vontade da maioria”, mas aí seria preciso lembrar de alguns detalhes importantes. Primeiro, que é sempre a maioria dos eleitores, e numa eleição majoritária vira um plebiscito binário onde muitas vezes impedir o adversário é mais relevante do que apoiar o seu candidato. Em segundo lugar, nenhum liberal que se preza apoiaria a simples “tirania da maioria”, como alertava Tocqueville. O desejo das minorias também vale, e as garantias individuais importante mais ainda. Uma eleição ou uma manifestação de rua jamais serão sinônimos de carta branca para um governo.
Rodrigo Constantino