Os escândalos de abuso sexual de menores pelo cantor Michael Jackson completaram um quarto de século, e o assunto voltou à mídia esses dias com o lançamento do documentário “Leaving Neverland” da HBO. Ele conta a história de dois homens que teriam sido molestados pelo astro pop por anos, desde que tinham 7 e 10 anos, respectivamente.
Ana Paula Henkel comentou sobre a série: “Ontem assisti ‘Leaving Neverland’, documentário da HBO sobre Wade Robson e James Safechuck, que, supostamente (histórias tão detalhadas que fica até difícil falar ‘supostamente’), foram abusados por Michael Jackson durante anos quando eram meninos. O documentário é perturbador”.
Os relatos revelam um lado terrível, perverso, doentio de Jackson, o que não chega a ser novidade. Ele já foi denunciado várias vezes pelo mesmo crime no passado, e chegou a pagar milhões para fazer acordo com as famílias. Por que tanta gente ainda sente dificuldade de admitir que a estrela de “Thriller” e tantos outros hits era um pervertido maligno, que destruiu a vida de crianças inocentes?
Em parte isso se deve a uma característica comum da natureza humana: se gostamos e admirados um aspecto de alguém, temos uma tendência a extrapolar isso para o restante. Por exemplo: um músico ou ator talentoso precisa ser também um sujeito inteligente em política, uma boa pessoa preocupada com as minorias e os oprimidos.
E assim Chico Buarque e Wagner Moura acabam tratados como “intelectuais” e “humanistas”, mesmo que defendam ditadores crápulas e demonstrem em seu dia a dia posturas um tanto egoístas e gananciosas. Uma pessoa brilhante numa área acaba sendo vista como brilhante e boa em outras, mesmo que não tenha a menor noção do que se trata ou demonstre certo desvio de caráter.
Temos dificuldade em separar as coisas, em aceitar que um excelente músico ou físico seja um ignorante em outros assuntos, ou uma pessoa ruim. Há quem adore os filmes de Woody Allen, como eu, mas que tenham dificuldade de continuar elogiando sua obra após denúncias de que teria abusado da própria enteada. É difícil separar as coisas.
Há ainda o mundo do entretenimento, do showbiz, da idolatria aos ricos, famosos e poderosos na era moderna. O problema é que a fama, o dinheiro e o poder não garantem que a pessoa seja moralmente melhor. Pode muito bem ser o contrário, já que essas coisas podem corromper o caráter e garantir certa impunidade relativa, o que fomenta o pior lado da nossa natureza.
Mas o ponto mais importante aqui é a tentativa crescente de esvaziar a responsabilidade individual por nossos atos. Os “progressistas” gostam de apelar para determinismos em que o indivíduo não tem mais livre-arbítrio. A sociedade, o sistema, os imperativos da biologia, o ambiente, alguma força exógena qualquer domina totalmente o sujeito, que não tem mais volição. Michael Jackson era um pedófilo sem controle, incapaz de colocar freios entre seus impulsos e desejos e seus atos, tadinho! Ironicamente a esquerda nunca vai aceitar a mesma narrativa para um machista que espancou sua mulher, e com razão – apesar da incoerência.
Eis o fato: uma sociedade livre só sobrevive se cobrarmos dos cidadãos responsabilidade pelas suas atitudes. Podemos continuar admirando o talentoso popstar. Mas reconheçamos que se tratava de um monstro moral, de uma pessoa terrível, não só doente, mas também criminosa.
PS: Se o problema estiver na mentalidade binária “progressista” sobre vitimismo, a solução é simples. Basta colocar o Michael Jackson negro como o fantástico artista pop, e o Michael Jackson “branco” como o pervertido que abusava de crianças inocentes. Impasse resolvido! 🙂
Rodrigo Constantino